sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Capítulo 1--parte 2

Capítulo 1 - parte 2

Rumo ao Araguaia

Em junho de 66, quando o PC do B realizou a sua 6ª Conferência, Elio estava presente, como delegado do Espírito Santo. Como o partido reivindicava ser uma continuação do antigo PCB, a numeração de suas conferências foi mantida, bem como o nome do jornal do Comitê Central, A Classe Operária.
De 62 até 66, o Partidão havia sofrido uma série de rachas e de cisões, perdera muito da sua influência e se desmoralizara politicamente com a derrubada do governo João Goulart. Os olhares da maioria dos revolucionários brasileiros se voltavam para Cuba, onde uma revolução armada derrubara a ditadura de Fulgêncio Batista.
A Sexta Conferência aprovou um documento intitulado “União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista”, onde propunha a formação de um governo democrático, representativo de todas as forças patrióticas, como forma de aglutinar as forças que se opunham ao regime.
Tarzan de Castro havia sido colega de turma de Elio, em 65. Em entrevista ao Jornal Opção, Tarzan afirmou que guardava uma grata recordação dessa viagem: “Peguei na mão de Mao, num encontro no Palácio do Povo, em Pequim. Passamos uma tarde com ele, com o primeiro ministro Chu-En-Lai, toda a cúpula. Falamos sobre Brasil, América Latina, cultura. Foi um encontro muito agradável e proveitoso”.

Alegando que a proposta de um governo democrático era um recuo em relação ao governo popular revolucionário que constava no Manifesto Programa, Tarzan de Castro encabeçou o grupo de militantes que criou a Ala Vermelha do PC do B, mais conhecida como Ala Vermelha. A Ala criticava a inação do PC do B e cobrava o início imediato da luta armada.
A crítica à inação é improcedente, pois já estavam sendo dados os passos que levariam ao Araguaia. Embora a formulação teórica da luta armada não estivesse acabada, a VI Conferência assinalava que “a luta revolucionária em nosso país assumirá a forma de guerra popular”. Segundo depoimento de Elio, os militantes estavam conscientes de que a luta armada era inevitável e a ela se referiam como sendo “a quinta tarefa”.
Em 66, começam a chegar os primeiros militantes à área da futura guerrilha do Araguaia. Na verdade, o trabalho no campo é bem anterior. “A partir de 1964, pessoas e recursos começam a ser deslocados para o campo. O dirigente Maurício Grabois e o economista Paulo Rodrigues, militante comunista desde 1960, estão entre esses quadros... No intuito de localizar uma zona adequada ao propósito do Partido, os dois homens vão percorrendo parte do país de sul a norte.”[in Maia, Iano Flávio et alli, p. 39].
A área procurada deveria ter condições geográficas favoráveis à guerrilha e desfavoráveis às tropas regulares e uma população com bom potencial de luta. Nessa pesquisa os dois chegaram até Porto Franco, no Maranhão, de onde seguiram para o sul do Pará.
“Paralelamente, Pedro Pomar e Carlos Danielli também realizam expedições. Danielli... viaja pelo Nordeste. Mais especificamente pelo Ceará, Piauí, Maranhão e oeste da Bahia.... Pomar se desloca através de Goiás, Maranhão e sul do Pará, disfarçado de vendedor de remédios... Depois dessas viagens de reconhecimento, ele e Ângelo Arroyo ficam responsáveis por preparar a instalação de militantes em Goiás.” [in Maia, Iano Flávio et alli, p. 39]
“Pomar e Arroyo instalam militantes como fazendeiros, posseiros ou comerciantes em pequenas cidades de Goiás. Mas a região apresenta alguns pontos negativos. A população que seria a base de massa da guerrilha, é muito dispersa e tende a se movimentar acompanhando a mudança da fronteira agropecuária.” Grifos nossos.[idem]
Em 65, Vitória Grabois, filha de Maurício Grabois, seu marido, Gilberto Maria Olímpio, Osvaldão e Paulo Rodrigues se instalam em Guiratinga no Mato Grosso. Em depoimento dado à Deusa Maria de Souza, Vitória dá mais detalhes:

“Sobre esse episódio que eu saiba não há nada escrito, nem o PC do B fala algo. No início dos estudos para viabilizar a Guerrilha era necessário escolher uma região adequada para iniciar o movimento. Gilberto, Paulo, Osvaldão e eu fomos para o oeste de Mato Grosso. Gilberto e eu alugamos uma casa na cidade de Guiratinga. Paulo tinha um jeep e era “sócio” do Gilberto em um negócio de venda de roupas; Osvaldão era garimpeiro, na região e eu professora e dona de casa. Minha tarefa era o apoio logístico e também angariar o apoio das populações; a de Gilberto e Paulo era de reconhecimento de toda a região oeste de Mato Grosso; a de Osvaldão, inserção com as massas.
Foi um momento muito rico em minha vida. Ano de 1965, eu estava com 21 anos, recém casada e dona do meu próprio espaço.
Trabalhei com a população local como professora e me tornei uma pessoa muito popular. Após 8 meses, o grupo se desfez e voltei para SP e fiquei grávida, não retornando mais à região.”
Analisando o reconhecimento feito, o partido chegara à conclusão de que a área não era adequada. A busca prosseguiu rumo ao norte: centro-oeste e norte de Goiás e sul do Maranhão e Pará.
Ozeas Duarte ingressou no PCB em 1961, por ocasião da renúncia de Jânio Quadros. Em 64, logo depois do golpe, se juntou ao PC do B. Em 66, era o delegado do Ceará à VI Conferência. Em correspondência trocada conosco, ele fala de mais três áreas:
“Sei de mais três regiões de trabalho no campo: no Vale do Ribeira, trabalho embrionário conduzido por Pomar, ao que me parece, muito problemático, até mesmo pela localização. Não deu certo. Outro foi na Serra da Ibiapaba, área do bispo D. Fragoso, sujeito de esquerda, que mantinha contato e trabalhava com o partido sem nenhum problema. Quem estava à frente era Vladimir Pomar. Essa área foi abandonada, queimada por uma panfletagem absurda que fizeram por lá. E outra era no sul da Bahia, que mudou para MG e depois para MT. A repressão dava em cima, mas como era um movimento de massa um pouco mais amplo, o pessoal botava o povo dentro de ônibus, formava a caravana e se mudava, posseiros em novas terras devolutas. Dessa área saiu um torneiro mecânico que foi para o Araguaia. Virou armeiro, arrumador de armas que não tinha como arrumar.”

Em outubro de 67, Che é assassinado na Bolívia. No Brasil e no mundo, 1968 é marcado por manifestações estudantis e greves operárias. Aqui, a partir de 69, o aumento da repressão e a impossibilidade de se repetirem as grandes passeatas, levou várias organizações revolucionárias a optarem por ações armadas nas cidades. Eram inspiradas pela teoria do foco , uma generalização apressada da experiência cubana. (O foco era o embrião da guerrilha. Deveria se localizar no campo e era formado por um pequeno número de militantes oriundos das cidades).
Esse diálogo entre José Dirceu e Wladimir Palmeira, que em 68 eram duas lideranças estudantis de projeção nacional, é esclarecedor:
“Para a linha geral do movimento, na esquerda revolucionária, foi a Revolução Cubana que influenciou decisivamente. Primeiro, pelo mito do Che Guevara que nós tínhamos já antes do maio francês. Che era adorado. O curioso é que a esquerda brasileira nunca repetiu o que houve em Cuba. Ela dizia “vamos assaltar bancos para financiar o foco”, mas como nunca acumulou dinheiro suficiente, assaltar bancos virou ação. Fazia propaganda armada, mas nunca se chegou sequer a ser como um foco cubano, embora a motivação original de se pegar em armas fosse montada nessa concepção. Geraríamos o foco guerrilheiro e as massas adeririam, uma concepção que está em A Revolução na revolução, o livro do Régis Debray.
Zé Dirceu: O foco foi concebido pela ALN e pelo Carlos Marighella. Depois a ALN e o Molipo tentaram implantá-lo em Goiás, em algumas regiões, mandando pessoas para lá. Evoluiria para uma coluna guerrilheira, que no fundo é um foco. Mas nunca foi além de levar armas, comprar propriedade e levar umas cinco ou seis pessoas. Nunca passou disso.
Vladimir Palmeira: É tudo uma baboseira, sabe por quê? Porque o Régis Debray não conhece nada de Cuba.
Zé Dirceu: Nem da América Latina.[in Blog do Zé Dirceu].
Em 68, o PC do B publicou o documento “Alguns problemas ideológicos da revolução na América Latina”. O documento critica as concepções que negavam o aspecto nacional e democrático da revolução, condena a posição reformista do PCB e, indiretamente, a posição dúbia de Cuba, frente ao chamado revisionismo soviético. Há uma frase, atribuída a Fidel, que ilustra com muita felicidade esse posicionamento: “meu coração está com a China, mas meu estômago está com a União Soviética.” Entretanto, a formulação da guerra popular, junto com uma avaliação crítica de outros caminhos para a luta armada, só será feita em 69.
Em Havana, o Museu da Revolução, antiga sede do governo de Batista, ainda guarda as marcas de bala em suas escadarias. Na área do museu, pode-se ver o Gramma, que mais se pode chamar de barquinho, do que de iate. É inacreditável que 80 homens pudessem caber nele. No segundo andar, vendo os mapas e as maquetes militares, deparamos com algo mais inacreditável ainda: em apenas dois anos, os 12 sobreviventes do desembarque conseguiram derrubar o ditador Fulgêncio Batista!
Não cabe aqui analisar as causas da vitória da revolução cubana, mas, certamente, entre os fatores decisivos estavam: a existência de um amplo movimento de massas nas cidades; o isolamento de Batista, cuja ditadura foi uma das mais sangrentas dessa parte do mundo e um movimento camponês com tradição de luta. Não foi o exemplo heróico de um punhado de guerrilheiros que colocou toda essa massa em ação; ao contrário, foi a existência desse enorme potencial revolucionário que assegurou o êxito da luta armada.
De novo, recorremos à opinião de Wladimir Palmeira:
Vladimir Palmeira: No dia em que Fidel iria desembarcar, naquela aventura, havia uma insurreição popular com cinco mil militantes, na segunda cidade mais importante de Cuba, Santiago. Transposta para o Brasil, equivaleria a uma insurreição no Rio. Só que o barco do Fidel atrasou dois ou três dias. A insurreição foi derrubada nesse período, e ao desembarcar Fidel estava vendido. Mesmo assim, ele tinha contato no campo. Não foi chegar e botar os caras sem nenhum contato. São essas são bobagens que Debray exacerbou. Existia em Cuba uma tradição de guerrilha rural, desde que o país ficou independente. Debray fez um manual que descaracterizava a história da Revolução Cubana. Nem a revolução foi como ele disse – que tinha uma certa dose de aventura. Fidel era um cara excessivamente voluntarioso, mas contava com uma base política e de apoio enormes. Não tinha nada a ver com aquilo que tentamos fazer aqui. Imagina, você chegar numa cidade como o Rio e fazer uma insurreição por três dias. O livro do Debray prejudicou muito. A questão da luta armada devia ser tratada de forma mais séria.” [ in Blog do Zé Dirceu]
Nenhum dos quadros iniciais da guerrilha cubana tinha uma formação política mais sólida. O próprio Che tinha apenas tinturas de marxismo. Não é de se estranhar, que essa rica experiência ficasse reduzida a uma fórmula mágica, a teoria do foco.
O documento do PC do B, de janeiro de 69, “Guerra Popular, caminho da luta armada no Brasil”, faz um resumo bem apropriado dessa teoria. “Esta teoria não tem em conta a situação objetiva, as forças de classe em presença e o processo político em curso. É uma concepção voluntarista. Segundo os teóricos do “foco”, a guerrilha se desenvolve harmonicamente, “a partir de um núcleo central único”, situado em regiões pouco acessíveis e com combatentes provindos das cidades. Esse núcleo cresce até se transformar numa coluna-mestra que, ao atingir 120 a 150 homens, dá origem a outra coluna que, por sua vez, origina mais outra e assim por diante. Sua existência e manutenção dependem fundamentalmente dos centros urbanos. Seu método não tem em vista ganhar as massas para que elas mesmas façam a sua guerra. O “foco”, segundo seus defensores, por si só, através de atos heróicos de pequenos grupos, atrai novos combatentes e conduz a revolução à vitória. A guerrilha é o próprio partido.”
Em contraste, vejamos o resumo dos aspectos básicos da guerra popular, segundo o PC do B: “... será uma guerra de cunho popular, travar-se-á fundamentalmente no interior e mobilizará as grandes massas camponesas, será prolongada, deverá apoiar-se em recursos do próprio país, empregará o método da guerrilha em grande escala, forjará o exército popular, estabelecerá bases de apoio no campo. Terá que se orientar, durante muito tempo, pelos princípios da defensiva estratégica e deverá guiar-se por uma política correta.”
Em dezembro de 69, o PC do B lançou o documento “Responder ao banditismo da ditadura com o avanço da luta do povo”. Internamente, ele se tornou conhecido como o documento da “revolucionarização”. Considerando o agravamento da repressão e sabendo que em breve o partido poderia iniciar ações armadas no campo, a direção procurava preparar os quadros e os militantes para a nova situação.
“Impõe-se a revolucionarização cada vez maior do Partido. Seus dirigentes e militantes precisam dedicar-se integralmente à tarefa de aplicar a orientação partidária. Cada comunista tem que organizar sua vida de maneira a consagrar o máximo de seu tempo ao Partido, transformar-se num autêntico soldado da causa do povo, pronto a executar qualquer atividade e onde quer que seja. Tem que evitar tudo que possa prejudicar sua militância revolucionária. Deve estar preparado, moral e ideologicamente para arrostar todas as dificuldades e enfrentar todos os sacrifícios. Para ser um autêntico servidor do povo tem de subordinar sua vida e atividade às necessidades do Partido e da revolução,estar sempre pronto a realizar o trabalho mais difícil que a luta revolucionária exige.” Grifos nossos.
A partir de 1970, se acelera o envio de militantes para a região do Araguaia. Eram muitos os que se ofereciam como voluntários para ir para o campo, onde era esperado que fosse se travar a luta armada. Por outro lado, o partido era cobrado tanto internamente, pelos seus militantes, quanto externamente, pelos militantes das organizações que já haviam iniciado as ações armadas, pela demora em dar uma resposta efetiva ao endurecimento do regime militar.
Ao final desse livro, pretendemos fazer uma ampla avaliação da política do PC do B em relação ao Araguaia, entretanto, fazem-se necessários dois reparos iniciais. Primeiro: é preciso examinar com muito critério a afirmação de alguns sobreviventes da guerrilha de que não tinham noção do tipo de trabalho que encontrariam no Araguaia. Embora a localização da futura guerrilha não fosse conhecida até por parte do Comitê Central, o sentimento geral no partido era de que em breve seriam desencadeadas ações armadas no campo. O autor se lembra bem de que, em Porto Alegre, um militante havia “dado um prazo” para que a guerra popular começasse, sob pena de ele não acreditar que o partido estivesse falando sério. Isso foi um pouco antes do começo da guerrilha.
Segundo: é falso dizer que o PC do B estivesse abandonando o trabalho legal e as entidades de massas, legais ou clandestinas. Essa era a visão das organizações foquistas, que recrutavam a grande maioria dos seus militantes entre os estudantes. Como não era mais possível repetir as passeatas de 68, elas teorizavam que o papel do movimento estudantil era o de fornecer quadros para a revolução. Mesmo a atuação nas entidades legais, estreitamente vigiadas, poderia “queimar” os militantes. Preferiam organizar círculos de leitura e de estudos entre a chamada vanguarda.
O caso da UNE é emblemático. Embora tivessem um grande peso no movimento estudantil em 68 e 69, essas organizações abandonaram a entidade e, na diretoria eleita no XXXI congresso, realizado em 71, só havia militantes do PC do B e da AP , que já eram majoritários nas entidades legais (a AP estava cindida em duas grandes correntes). A AP era uma organização revolucionária, originada da esquerda católica, que evoluiu até o maoísmo. Teve grande influência nos movimentos populares da década de 60. Betinho, o irmão do Henfil, foi um dos seus fundadores.
Em linhas gerais, essa foi a trajetória política do PC do B da ruptura até o Araguaia: desligou-se do PCB em 62, em virtude de sua política reformista; optou desde o início pela luta armada; alinhou-se ao lado da China na cisão do movimento comunista internacional; iniciou desde 64 a preparação do trabalho do campo e a escolha de uma área com potencial para futuros conflitos armados; definiu, em 66, na VI Conferência, uma plataforma política capaz de unir as grandes massas do país no quadro de uma revolução nacional e democrática; delineou, em 69, o que seriam os princípios básicos da guerra popular e, a partir desse ano, intensificou a remessa de militantes e a preparação ideológica do partido para os futuros confrontos. Ao mesmo tempo, manteve a sua atuação nas cidades, nas entidades de massas, legais ou não.

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