domingo, 8 de janeiro de 2012

A Nietzsche Romântico

Heraldo Barbuy

“Pois que tal é a sorte nossa: crescemos em altura, mesmo admitindo que seja este o nosso Infausto Destino: --pois que habitamos sempre mais próximos ao raio!

F. Nietzsche, Gaia Ciência, 371.

É como autor de ZARATUSTRA MORREU que venho nas linhas breves desta prefação ao “Viandante e sua Sombra”, prestar tributo leal da minha admiração ao doloroso gênio louco de ASSIM FALAVA ZARATUSTRA; quando levanto as catadupas da minha eloqüência contra Friedrich Nietzsche, é porque tomo conhecimento de que Ele existe, imóvel e soberbo nessa região tempestuosa que procuramos ambos, junto às granus profundas onde habitam os raios inquietantes da “inversão de todos os valores”: muitos deve haver, cuja existência não percebemos, pois que a extensão visual de nossos horizontes se delineia de montanhas demasiado altas para que nos sejam perceptíveis os pigmeus dessa literatice que a falência do estilo tenta impingir por literatura. Implacáveis e marmóreos, como gigantes eternamente plantados na estrada de suplícios que a humanidade percorre, há homens diante dos quais os séculos transitam humildes como rebanhos diante de pastores. Não confundamos, todavia: não são esses que apascentam o mundo acorrentando-o com o terror da desgraça eterna ou com os fetiches da eterna felicidade, os pastores verdadeiros da peregrina humanidade; o gênio não precisa engordar com promessas, nem aceita os redis da escravatura, não se nutre das carnes de suas ovelhas, nem é jamais com tosquias que se proteje dos invernos de sua miséria; os verdadeiros pastores são aqueles que SÃO e jamais os que simplesmente “parecem”. Não queremos báculos, nem custosas paramentas, nem nos arrogamos a filiação direta de divindade alguma; somos filhos da tempestade e nosso pai não tem necessidade de ministros; tantos milhares de anos passarão submissos ao pó de nós, quantos foram os milhares de anos que por sobre nós passaram opressores, na tortura dos males que nos foram inflitos; não é com seduções quiméricas que seduzimos e sim como gênio que assusta, com a lágrima que comove e com a verdade que espanta: somos heróis porque o nosso pessimismo nos faz rejeitar com desprezo a bem-aventurança dos paraísos e aceitar altivamente as amplidões do Nada, porque bem sabemos que somos nós a antítese de Tudo; de Tudo quanto há de cólera e revolta, de clamor anônimo e rebelião espetacular, de punho fechado que se eriça e de mão descarnada que se abre e suplica, de desespero, de soluço, de agonia, de tropel e conclusão; nós somos aqueles que assimilaram o passado, refletiram o presente, e projetaram a humanidade para os grandes arcanos do futuro; não foi o ventre de nossa mãe que nos engendrou e sim a Dor de Conúbio e com o Sonho. Os “outros” subiram à face da Terra e “nós” descemos a ela; eis a nossa diferença.
Nietzsche é mais do que um homem, porque é também uma catapulta; investe contra tudo, rebela-se contra todos, ergue-se sozinho como último e derradeiro marco do Grande Romantismo, calcado nos confins dum século que morre; sua luta é contra a história, contra a moral do prejuízo, contra os valores da rotina, contra os regimes de governo, contra o verbo dos profetas, contra o dogma das religiões, anárquico, rebelde, selvagem, utopista e sublime tal qual o traço psicológico da Originalidade.
É grande nas suas contradições, soberbo na sua humildade, gigantesco na sua pomposa simplicidade, filósofo na sua orgulhosa poesia, poema vivo que palpita como as cordas duma harpa ao sopro de todo vento. Sempre no antagonismo de si mesmo, impiedoso para com tudo, jamais teve piedade dos seus tormentos; amava tudo quanto odiava e arremetia contra tudo quanto amava; torturava-se e lutava contra sua própria luta, recebia as influências que recebia; Schopenhauer penetrou-lhe fundo com o todo e contingente por vezes inconcusso do seu sistema; mas Nietzsche, escudando-se na mesma Dor, em vez de pregar a “Negação da Vontade de Viver”, forja com tal suplício não sei que espantosa Alegria da Vida; tal como Beethoven transforma seu martírio em rebelião e sua rebelião em delírios diosiníacos; são gargalhadas satânicas da Alegria, mas de Alegria que dói; por isso é que frequentemente se contradizem; são prazer na forma, mas dor no conteúdo. “Forjam estrelas porque trazem um caos dentro do peito.
Friedrich Nietzsche sempre foi nas suas obras o maior inimigo de si mesmo; apologista da violência, viveu na doença e na debilidade; “humano, muito humano”, investiu contra os homens inventando o Super-Homem; sociável e carinhoso, errou pelas solidões e condenou-se ao desespero; paladino da aristocracia, viveu no desconforto e no abandono; chorava quando lia a Bíblia e acabou endereçando venenosas setas para o coração do cristianismo; teve a invulgaridade de erigir-se em “Anti-Cristo”; compreendia demais para que pudessem compreendê-lo; por isso não teve mulher, nem filhos, nem amor, nem pátria, nem fortuna, nem sossego, nem religião, exceto a si mesmo; tanto se viu detestado e repelido, solitário e incompreendido, que acabou acreditando na própria divindade; como todos os grandes homens foi dum egocentrismo que ultrajava a hipocrisia dos rebanhos medíocres. “Ecce Homo”, é um livro em que, como na Bíblia, um deus se faz elogios a si próprio; sobre o vácuo de todos os ninguéns, vinha criando o céu e as estrelas, para implantar sobre a face da terra a onipotência do seu prodigioso “Alguém”.




A Nietzsche Filósofo

Essencialmente Poeta, nunca foi, entretanto, em todo o rigor do termo, o que se deve entender por “filósofo”; o que há de soberbo na sua obra é a forma e não o conteúdo; sempre às voltas com suas dores de cabeça, com suas câimbras de estômago, sempre partindo e sempre chegando, gelando pelos invernos, matadores, perseguido pelos demônios da sua imaginação, arrastando-se continuamente por vagões de estradas de ferro, habitando trapeiras e vivendo de medicamentos, Nietzsche não teve nunca essa tranqüilidade simples, mas descuidada sem a qual não se elabora um sistema de filosofia; todos os seus livros são apaixonados, pessoais, robustos e todos, à exceção do “Renascimento da Tragédia”, são obras inacabadas; lançava mão do aforismo que não custo o sacrifício da paciência e da paz que não tinha e procura justificar-se declarando que o aforismo condensa mais sabedoria com menos palavras, mas esquece que deste modo não chegaria nunca a expor em linhas precisas e contorno que se descortinava das alturas em que vivia; e o maior de seus males devia consistir exatamente em sentir que a expressão das suas idéias sempre vária e sempre descontínua; frequentemente nublava-se, tornando-se obscuro, porque esse homem “que tinha muito de cego” possuía entretanto, olhares de lince que atingiam esse ponto longínquo do horizonte em que tudo se volve cósmico e confuso.
Contudo, nem sempre se deveu essa confusão à extensão dos panoramas abrangidos. Porque, como filósofo puro e na totalidade das suas teorias, Nietzsche não é apenas refutável como também absurdo; longe estava ele dessa precisão matemática e concisa com que, por exemplo, Kant, Fichte e Schopenhauer souberam expor suas teorias, corrigindo-se ou ampliando-se mutuamente; foi com paciência e longas meditações, cada vez mais profundas, que Schopenhauer conseguiu expor o seu admirável pessimismo, rigorosamente centrado na idéia pela qual todo mundo da forma é a objetivação da Vontade de Viver, a representação da “Idéia”, o correlativo da “coisa em si” de Kant; com segurança e raros desmaios de paixão, fechado dentro de si mesmo, na amargura das desilusões soube levar os fios da longa meada desde as catacumbas da Índia até os labirintos do Budismo e não abandonou a lógica pelo calor da poesia, nem a razão pelas “orgias de Dyonisos”. Nietzsche, ao contrário, nem se baseou como os filósofos na realidade fria dos fatos, nem soube tirar conclusões completas de suas descobertas originais. Em última análise, essa idéia do Super-Homem estava em germinação no cérebro do século criador do socialismo científico: devia ser, não apenas uma conseqüência do transformismo de Lamarck e Darwin, como também e principalmente uma reação sobre as teorias da igualdade e democracia; o Super-Homem devia ser de certo modo, uma Santa Aliança filosófica, uma reação sobre os ideais da Revolução Francesa; Nietzsche recebeu no seu consciente a necessidade dessa “reação” e preconizou o Super-Homem, sem que ele mesmo soubesse que esse decantado Fichte, outra coisa não podia ser senão o retrocesso para os regimens da tirania e do absolutismo: “tese de retorno sobre si mesma”.
O Super-Homem, como Nietzsche o pregou, vem todo envolto na linguagem poética dos estilos bíblicos, mas nunca deixou de ser uma profecia ainda mais amarga que todas as profecias catastróficas da velha filosofia da história e em particular do cristianismo, uma visão desse dia que era para o poeta da Genealogia da Moral, o “dia de amanhã” e que para nós é pura e simplesmente “o dia de hoje”.
No decurso dessa prefação, eu me sinto na contingência de responder dum só golpe a tantas inventivas lançadas a um Anti-Nietzsche da minha autoria, denominado “Zaratustra Morreu”: alhures este livro não foi recebido como no Brasil, onde não encontrou outra crítica além da linguagem despeitada de todos os que não foram capazes de compreendê-lo; ninguém soube ou ninguém quis atingir os verdadeiros fundamentos da minha teoria que é radicalmente oposta ao assim chamado Super-Homem: o fundamento da minha ética não é apenas a tese pela qual toda Moral é codificação da “utilidade social”, senão que reconhece também que essa utilidade é sempre e unicamente a utilidade da classe dominante e não é apenas o conteúdo que se contém na forma destas palavras.
Nós não podemos ter a pretensão de induzir a humanidade a regenerar-se para tal ou tal sentido, uma vez que não podemos racionalmente reconhecer fundamento algum nas teorias de livre arbítrio, inda que não fosse senão naquilo que concerne ao destino histórico da sociedade: ninguém pode traçar o destino da humanidade, senão procurar o destino para o qual a humanidade se dirige; pregar alguma cousa que dependa da livre vontade dos homens e reconhecer ao mesmo tempo que esses homens não têm liberdade de vontade, é incorrer numa contradição a que não soube esquivar-se o sublime estilista de “Assim Falava Zaratustra” –Dado que o desenvolvimento dum sistema se veja obrigado pela sua sequência a reconhecer que não é nenhum “liberum arbitrium indifferentiae” e a constatar logicamente e “inexistência do livre arbítrio”, esse sistema deve procurar o como “virá a ser” aquilo que é; proceder doutro modo é fazer religião e não filosofia. –Referimo-nos ao vir-a-ser do mundo da forma, porque bem sabemos que fora do mundo da forma, o tempo não existe, senão na sua expressão eterna que é o “presente”, o perpétuo. É, para além do princípio de individuação e do princípio da razão.
Somos os destruidores da Moral, porque reconhecemos que é a Moral que se destrói, visto que não há nada mais variável que essa Moral que vagueia ao sabor das forças que produzem a marcha histórica da sociedade humana. Toda história foi escrita pela hostilidade com que se contendem as três forças básicas de seu movimento: há uma força que procura o “retorno”, uma força que quer “permanência” e uma força que exige cegamente a transmutação e o “futuro”. Nietzsche que atacou a excessiva influência dos conhecimentos históricos, opunha-se à igualdade e tornara-se lógico quando exprimia a fatalidade da luta perpétua; mas o que Nietzsche não vislumbrou foi a possibilidade do “deslocamento do ponto em cujo derredor a luta gravita”; as leis evolutivas indicam que os homens se tornarão cada vez mais “indivíduos” e portanto, cada vez mais diferentes: --a nossa idéia de “igualdade” não repousa sobre uma simiesca coletivização do homem e sim sobre uma realidade que é o “indivíduo”; deveres iguais e direitos iguais, fora do campo econômico e administrativo, é coisa que a nossa idéia de igualdade repele, porque subentende a existência de outra coisa que do mesmo modo repelimos: isto é, a perpétua infantilidade humana, a perpétua necessidade de senhores e tiranos; a diferenciação cada vez mais sensível, age no domínio biológico da forma envolvente e elevando os códigos da Moral até sua extinção, acarretará precisamente o deslocamento desse ponto em torno do qual gira essa luta que hoje nos confrange pela insatisfação das necessidades vitais. A democracia legítima não depende nem da “piedade”, nem da bondade dos homens e sim da inexorabilidade das leis que determinam a marcha da história, que é a marcha da Evolução. O Super-homem geraria sempre a pressão, enquanto que a Super-Humanidade, tal como a expusemos, inda que de todo modo totalmente poético em nossa obra aludida, seria precisamente a inexistência de qualquer forma diretiva e coercitiva no campo da vida não econômica. Ao menos ao que me parece, tirania e anarquia mutuamente se repeliriam.
Inútil se torna refutar a “Vontade de Poder” que é o eixo sobre o qual se movem as teorias do Super-Homem e na generalidade as teorias de Friedrich Nietzsche; ele mesmo escreveu que há certos pensadores que se refutam a si mesmos; eis uma das afirmativas em que Nietzsche não se refuta, exatamente “porque se refuta”.
Do grande ciclo de livros que além de suas obras anteriores, “A Origem da Tragédia”, “As Inatuais”, o “Humano Demasiado Humano”, de que faz parte o “Viandante e sua Sombra”, a Aurora, “A Gaia Ciência”, “Além do Bem e do Mal”, “A Genealogia da Moral”, o “Crepúsculo dos Ídolos”, o “Caso Wagner” e o “Assim Falava Zaratustra”, do grande ciclo de livros que digo que deveria constituir a obra-prima científica de Nietzsche sob a denominação genérica de “A Vontade de Poder”, ele só nos deu em verdade “Anticristo” e na sua “Genealogia da Moral”, como em “O Caso Wagner” acena a um livro capital que deveria ter sido a “Fisiologia da Estética”, que ficou em mero esboço. Todo esse ciclo de obras ia desempenhar o papel de justificar suas idéia sobre a “Vontade de Poder” e a tentativa da “inversão de todos os valores”, mas infelizmente a doença e a loucura privaram o mundo desses futuros primores da arte premissa lógica que foi o Pessimismo, para chegar a uma conclusão ilógica que foi a Alegria do Poder. Schopenhauer não se deturpa quando expõe a Origem do Egoísmo com a naturalidade duma conseqüência da Vontade de Viver, que é o seu ponto de partida, o nómeno de todos os fenômenos; mas o autor do “Viandante e Sua Sombra”, para ocultar o seu pessimismo deu-lhe por máscara gaiata a Vontade do Poder e capitalizou assim uma das conseqüências de Schopenhauer fazendo-a o núcleo das variáveis doutrinas.
Mas a grandeza de Nietzsche, como homem invulgar, não repousa sobre sua pretensa irrefutabilidade e sim sobre a incomensurabilidade do seu mundo sensível, da sua Arte alemã, diante de cujo estilo o próprio Goethe recua vencido. Um dos méritos inalienáveis de Friedrich Nietzsche plasmou-se para sempre na audácia e no vigor com que soube arremeter contra Moral do Preconceito e a doentia civilização do cristianismo. Foi sozinho, na dor e no isolamento, na enfermidade e na incerteza amarga de seus dias, que se ergueu –qual novo Atlas, --suspendendo sobre os ombros uma nova ordem de coisas. –Quando não convence, comove, quando não comove, impõe. Irrompe sobre o panorama da literatura e da filosofia com o luxurioso despudor e a heróica violência das grandes vitalidades. –Estóico na vida e estóico nas intuições, sua teoria do “perpétuo Retorno”, simultaneamente formulada por Gustave Le Bon, sob a paternidade de Blanqui e de Heine, é fundamentalmente uma teoria estóica.
Como todos os homens leais e possuidores da própria consciência, não se oculta nunca sob a máscara hipócrita da moléstia e da humildade dos “Pregadores da Morte”. Tendo-se, desde a mocidade, rebelado contra a religião, erigiu o seu gênio em uma nova divindade: o Super-Homem é o produto desse gênio de cujos infinitos sofrimentos a Natureza um dia teve piedade dando-lhe a loucura. Ultrajado e desconhecido, sob o escárnio e o riso imbecil da mediocridade que reina em todos os lugares, foi preciso que Nietzsche se obumbrasse para sempre nos escuros desertos da irracionalidade, para que se visse à luz do dia seu imenso poder de raciocínio e de imaginação, sua espantosa capacidade expressiva.
--Foi sobre o ataúde dessa divindade morta que o vigésimo sexto Gautama ergueu a tristeza de sua voz sob a orquestra soturna que tangiam os devas do deserto. Doce era o crepúsculo e sonhadora a bruma que beijava os seios do horizonte. Então, vendo a “Sombra e seu Viandante” imóveis para sempre na estática postura duma estátua que mirava com vazios olhos a curva do ocidente, sobre um féretro de altura saudou-o deste modo:
---Saúdo-te, ó cordilheira minha irmã e minha inimiga, de monte em monte e de flanco em flanco; bem vês que não estremeço diante de ti e admiro-te porque tu não estremeceu diante de mim; minhas neves não foram desfeitas ainda pelo verão que sazona os frutos e tuas neves não foram desfeitas ainda pelo verão que sazona os frutos e tuas neves já foram colhidas pelo sopro de muitos ventos: eu conheço por isso a rispidez de teus rochedos e é sobre o estuário de teus rios que reflito o panorama das minhas rochas. Vê todavia como é profundo o abismo que nos separa: de tais furnas tenebrosas irromperão as grandes convulsões que hão de arremessar-nos uma sobre outra. E no fragor desta luta ouvirás ecoando pelas tuas catacumbas o claro duma Nova Humanidade.
Eu não quero o Super-Homem porque amo a Humanidade; eu quero a Super-Humanidade porque amos os homens.
Em verdade vos digo: --
Zaratustra morreu.

Nenhum comentário: