terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Gastroplastifilosofia: Jô é a mais esganada das esganadas

O que é a obesidade em termos filosóficos?

Penso que, socialmente, ela pode ser descrita como maldade (perversão da vontade), como fez Santo Agostinho em suas confissões:

"Indaguei sobre a maldade e não encontrei uma substância, mas si a perversão da vontade afastada de Vós, o ser supremo, tendendo em direção às coisas inferiores, expelindo suas entranhas e inchando-se toda."

Tanto a obesidade quanto a anorexia fundamentam-se no problema do idealismo subjetivo. A anoréxica tem a imagem do corpo como gorda, a obesa tem a imagem de si como magra. O terror da primeira vem de que essa fixação, que é o que ela teme, crie a realidade, essa imagem passa a persegui-la. Ela assume um comportamento masoquista. Já no caso da obesa, ela tem uma imagem de si que gostaria que instaurasse a realidade, está em paz com sua auto-imagem, o que lhe hostiliza é o mundo, que lhe ataca opondo a outra imagem, a real, dela que "se incha toda". Isso gera a agressividade e o sadismo.

Tanto no caso da obesa quanto da anoréxica, o que as assusta e assombra é o desejo sexual da mulher (devorar homens). A anoréxica vê esse desejo despudorado e sem limites na sua imagem mental e se pune, deixando de desejar e de comer.

A obesa tem uma auto-imagem ideal e não vê seu "corpo em evidência". A sociedade vê na obesidade da mulher uma exposição obscena de seu desejo e clama para que a mulher se "desinche toda", mas ela não consegue (tem uma imagem ideal de si que ela sonha que irá instaurar a realidade).

Se a anoréxica sofre com esse desejo despudorado fixado em uma imagem, a obesa sofre com esse desejo figurado na sociedade.

Pantagruel e Gargântua eram gigantes comilões e sensuais; Sade morreu obeso e tornou-se o símbolo do desejo exacerbado; o carnaval, explosão do desejo, tem como um dos símbolos o Rei Momo, ou seja, a entronização do desejo.

Jô Soares lançou o seu romance As Esganadas. Viva o gordo, abaixo a gorda, poderia ser o lema de Jô Soares. O gordo sofre da mesma exacerbação do desejo que a gorda, mas não sofre a mesma punição que a gorda: que o digam Datena, Faustão e o próprio Jô Soares.

Jô, no entanto, exibe desejo exacerbado de ser cultuado como personalidade, desejos narcísicos extremados, criando um programa onde tudo gira em torno de seu ego, motivando inclusive uma paródia, o Jô Suado.

O desejo do ego de Jô, que em sua gula derruba os limites do narrador como alguém dissociado do autor, volta-se para o desejo de uma "esganada", ou seja, o desejo exacerbado, chegando até mesmo ao desejo canibal (devorar homens). Ao mesmo tempo, pode-se dizer que ele deseja o desejo de morte do matador das esganadas (matar o desejo de devorar homens dentro de si).

Jô não é gordo, ele é obeso e tem a psicopatologia do obseso aqui descrita: tem uma imagem ideal de si. Ao criar um romance, cria um mundo narsícico, onde o homem magro é que representa (também) a sua auto-imagem, a quem ele não deseja punição ou destruição.

Ele deseja a destruição dessa gorda sociedade real que conflita com sua auto-imagem ideal, daí ele cria esse universo ficcional onde luta o desejo de devorar homens das gordas e o desejo de matar o desejo de devorar homens, que é a arena onde seu desejo atua, produzindo uma prosa untosa, adjetivosa, que parece expelida das entranhas, "inchando-se toda". O que há de mais obscuro e sombrio no exibicionismo de um Jô, de um Datena, de um Faustão é que o desejo bissexual é o seu Mefistófeles.

Essa luta dos contrários é a refiguração do desejo de Jô, o que o faz ser "a" esganada-autor, ou seja, ser mais esganada do que as esganadas.

domingo, 25 de dezembro de 2011

O sistema filosófico de Nietzsche

Sistematizo aqui, de forma didática, alguns conceitos de Nietzsche. Considero Nietzsche um pensador sistemático. Pode-se supor que sua filosofia se origina de sua perda de crença em Deus na adolescência. A partir daí, ele elabora todo um sistema de pensamento para substituir a visão de mundo anterior.


Eterno retorno: Era um ensinamento ilustrativo, no fundo, moral: deve-se viver cada momento da vida como se ele tivesse que ser vivido infinitas outras vezes, até a eternidade. Pensado como uma imagem ilustrativa de um novo sistema valorativo, o conceito dá um sentido à vida, acabando com a sensação de vazio, de falta de sentido. Passa a haver o sentimento de continuidade que a religião busca na vida eterna, mas numa perspectiva valorativa diferente. Se no sistema judaico-cristão a promessa de um mundo perfeito (céu) onde se vive a vida eterna degradava esse mundo (“vale de lágrimas”), essa inversão de perspectivas inverte e valoriza essa vida presente, aqui e agora.


Ressentimento: Seria o rancor destrutivo que aquele que segue a moral da coletividade sente por quem se desvia dele. Quando colocado numa situação desfavorável, o espírito livre não fica ressentido, aceita o seu destino com amor à fatalidade, pois acredita, inclusive, que poderá ter que repetir essa fatalidade.

Amor fati: é o nome da aceitação de seu destino que o espírito livre deve ter. Se o crente aceita seu destino em nome da vontade de Deus, o espírito livre o aceita em nome de dizer sim à vida. Negar o sofrimento seria tentar fugir da vida. O certo seria buscar ser espectador de sua própria tragédia (criar arte) e divertir-se com ela.


Niilismo: É o estado de espírito do dogmático ou do fanático religioso, é o oposto do espírito livre. Para Nietzsche, o niilista é quem sacrifica a vida em nome do nada (preceitos religosos), de cultos onde o que a verdadeira divindade é a morte. A acepção de Nietzsche é o contrário do senso comum, que chama de niilista quem não acredita em nada. Duvidar do que é dito, colocar tudo em perspectiva, ou seja, contextualizar tudo, é a atitude do espírito livre para Nietzsche.


Vida: Fenômeno marcado pela moral como doutrina das relações de poder.


Gaia Ciência: Seria o verdadeiro saber. A verdadeira ciência seria alegre, gaiata, brincalhona, erótica, lúdica. Seria uma ciência integrada com a arte e com a religião. Deve-se rir de todo mestre e de si também. Seria a ciência que prevaleceria junto ao novo sistema valorativo, superando a ciência positivista. O humanismo, para ele ligado ao sistema valorativo judaico-cristão, estaria obsoleto, pois o homem diria sim à vida e teria um novo sistema valorativo.



Super-homem: É uma imagem claramente inspirada em Cristo. Esse termo é melhor justamente por possibilitar um contraste com o mito do super-homem de massa, que é um problema a ser enfrentado. O mito do super-homem de massa responde à indagação que fica na filosofia de Nietzsche sobre o que seria o super-homem: apresenta então uma raça de guardiães policialescos e super-poderosos do sistema social e político atual que mantém de forma subalterna os humanos. Trata-se de uma leitura oportunista que o poder fez do pensamento nietzschiano. O sistema de Nietzsche funciona assim: Nietzsche produziu o seu profeta (Zaratustra) para que os novos valores (que são os valores pagãos “tresvalorados”, ou seja, repensados) sejam transmitidos por experimentadores desses novos valores (novos filósofos) e então esses valores mudem o mundo para então redimir o mundo, fazendo com que homens redescubram a vida e até o estado funde uma ordem social na qual a idéia do Deus cristão não seria necessária, mas os deuses até então mortos, como Dionísio e Apolo, seriam novamente cultuados e repensados, mas principalmente na forma de um sistema valorativo e não de uma metafísica tratando de uma outra vida. O sistema do cristianismo funciona assim: Deus enviou o seu filho, Jesus, e ele, com poderes sobrenaturais, veio ao mundo e voltará no final dos tempos para julgar quem seguiu os seus ensinamentos, no fim da história. Por desconhecer economia e por elaborar seu pensamento a partir de um prisma aristocrático, Nietzsche imagina que o que está errado em nosso sistema social e político é apenas a não-criação de um sistema moral e ético alternativo ao cristianismo e que, se outro sistema alternativo entrar em cena, a história da humanidade se dividirá em antes e depois da filosofia de Nietzsche, fazendo com que a humanidade viva uma vida muito melhor.



Genealogia: Para poder criar novos valores, é preciso investigar como os valores são gerados. Por isso o filósofo dedica-se a estudar a ética e a moral, para superá-las e criar novos valores éticos e morais. Exemplificando a crítica genealógica, diante da frase: “Caio Blinder, judeu que vive em Nova York, se diz generoso”. A leitura genealógica deixa de lado a pergunta sobre a verdade da frase: será que ele é generoso mesmo? Ela se volta para outra questão: quem fala? Alguém que teme o estereótipo do judeu sovina, avarento. E por isso produz um enunciado afirmando o contrário. Colocando em perspectiva, a generosidade nasce da avareza, numa relação dialética que, no sistema de Nietzsche, assume o nome de perspectivismo.


Vontade de poder: vontade de renovar os valores do mundo, que são meros jogos de forças. O mundo é vontade corporificada, a música é expressão pura da vontade.


Morte de Deus: Seria a morte de um determinado sistema valorativo, o judaico-cristão. O sistema de valores do Deus cristão seria substituído por outro sistema de valores que diria sim à vida, sistema esse advindo de Dionísio, dentre outros deuses pré-cristãos.


Apolíneo: Ao inventar esses conceitos (apolíneo e dionisíaco), Nietzsche adianta um pouco do novo sistema valorativo que ele propõe, como escreve Lou, “lutando pelos deuses agonizantes”. Ser apolíneo é bom, dionisíaco também, conforme a perspectiva (contexto). Apolo é o deus da ordem, serenidade, harmonia, resplandecente, princípio da individuação, primado da forma e dos limites, bela aparência e sonho. O natal seria uma festa apolínea, pela reunião da família, ligada à ordem e à harmonia.


Diosiníaco: Dionísio ou Dioniso (Baco em Roma) era o deus do vinho, do sexo, da embriaguez. Festa, música, plenitude, dança, uno primordial, existindo uma busca de superar as formas e os limites, primado da desmedida, do domínio subterrâneo, da indiferenciação e da essência. O carnaval seria a festa dionisíaca por excelência.


Decadência: é o período em que acontece decadência do sistema de valores cristão, mas onde o novo sistema ainda não foi sistematizado e nem divulgado. O novo filósofo, do futuro, é quem supera o tempo onde prevalece o sistema de valores cristão e divulga esse novo sistema de valores, marcado por conceitos como apolíneo e dionisíaco.


Perspectivismo: Nome que a dialética assumiu no sistema de Nietzsche. Perspectivar algo é contextualizar esse algo. Conforme o contexto, ou seja, a perspectiva, a generosidade pode se transformar em avareza, ou seja, uma coisa pode se transformar em seu contrário.


Transvaloração dos valores: Grande transformação de valores anunciada por Nietzsche através de seu profeta Zaratustra, a ser realizada pela ação dos novos filósofos. Um novo sistema valorativo terá lugar a partir de Dionísio, Apolo, o budismo, os valores aristocráticos dos nobres europeus, dentre outros sistemas valorativos que forjarão esse novo sistema.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Crise na Eurozona: com o habermas entre as pernas

Blognovela: Crise na Eurozona: com o Habermas entre as pernas



(A crise na Cia Milkshakespeare se agrava com crise na eurozona. O Belo Adormecido volta da Inglaterra onde foi se encontrar com um representante da empresa Hamletdonald´s, que aceitou fazer um empréstimo. Para pagá-lo, Belo resolve transformar o teatro e a companhia em um cabaré com dançarinas que fazem strip. Francinny resiste, demite todos os blognomos, contrata Jô Weronyka de assistente e consegue convencer o Belo Adormecido a fazer uma peça sobre a crise na Eurozona chamada: Com o Habermas entre as pernas. Ensaio da peça. Entra um português de piada e outras nacionalidades com suas roupas nacionais, caricatas e kitsch).


Português: Pá, a crise na eurozona não é minha culpa.


Irlandês: Crise. Não. É. BECKETT.


Italiano: Non capisco niente. Europa tutti berlusconizzatto!


Habermas (apavorado, ofegante, faz atos de fala entrecortados): Solidariedade...É preciso pensar de forma....isso...isso...Merda, Merkel..o euro...o euro...é um ato de falha...digo, um ato de fala...desculpa, desculpa...é um ato...o euro... são atos éticos...discurso...sim, ética...discurso...o euro não...não...desculpe...como é que pode... aham...universalíssimo, intersubjetivo, intercomunicativo...não pode...Cameron irracional, irracionalista... o euro...(puf, puf), o euro...o euro não... não...era tão...tão...um dinheiro...universal...cosmopolita...o governo...o governo é mundial... é mundial....o euro..chamando terra...câmbio..câmbio (revira os olhos, ofega)...alô, alô, boy, xerife...Beckett, Kant, Houston, we got a problem...(curva-se, parece que vai desmaiar)


Irlandês: Euro. Faltar. Faltar melhor. Euro. Faltou BECKETT.


Jô para Francinny: gente do céu. Eles não são bons nem para comédia. Como é que vamos fazer?

Francinny: putz, Jô! Isso não tem graça nenhuma! Mas ou é isso ou o teatro vira um bordel.

Filósofo Louis Philippe Banzé apoia a enfermeira contra o terror politicamente correto






A contragosto, sou forçado a deixar minhas considerações teológicas e falar do "atentado de New Yorkshire", que segundo os politicamente corretos é mais terrível do que o de onze de setembro.

Nesse atentado, vimos a face do terror. A face do terror politicamente correto, no entanto, mostrou-se muito mais macabra, pois ela está no poder, nas universidades, etc.

Acontece que uma enfermeira, agente das instituições totais de Foucault, ergueu sua clava para matar, covardemente, um cachorrinho de raça Yorkshire que ela cognominou "Monstro". E levantou-se a ira dos politicamente corretos nas redes antissociais.

Juntos e misturados, os politicamente corretos nem imaginam que a enfermeira pode ter agido de boa fé para proteger sua filha de um cão que, para a menina, pode muito bem ser um monstro.

Estamos vivendo na era da comissão da verdade stalinista, quando o stalinismo "pinhosol" gay maconhista e aborteiro nos observa e qualquer gesto politicamente correto pode ser colocado na web, esse novo grande irmão, e punido com um linchamento público.

O que vi foi uma feminista liberada, guerreira, atendendo a seus instintos naturais e defendendo sua filha. Vocês não queria uma presidenta? Uma mulher forte, guerreira? Pois sim. A enfermeira é o além-da-mulher, a super-mulher nietzschiana. Viu? Tomaram!

Mas antes de atirarem pedras na enfermeira, lembrem-se de Sakineh, lembrem-se do islamofascismo de Khadafi que vocês defenderam na Líbia, contra os direitos humanos garantidos pela Europa que vocês não querem salvar (mais uma vez, mais uma vez!), dos neostalinistas de Putin que fraudam eleições na Síria, no Irã e que vocês apoiam em nome de pintar o terrorismo islâmico de vermelho.

Aliás, os terroristas politicamente não lamentam o atentado do World Trade Center, pensam "bem feito" invejosamente e choram, raivosos, o atentado do "Yorkshire Center".

Aliás, os terroristas do politicamente correto choram e se lamentam, mas depois vão se tratar em bons hospitais fornidos de enfermeiras bonitas, loiras e politicamente incorretíssimas. Já repararam que mulher feia e sozinha é sempre politicamente correta?

A enfeimeira não agrediu: defendeu-se como todos nós politicamente incorretos devemos nos defender da conspiração gramsciana mundial, dos islamofascistas, dos petralhas, dos stalinistas saudosos e trotsquistas que não aprenderam a lição de Paulo Francis e Christopher Hitchens.


Então pensem de forma objetiva e científica: numa uma luta entre o animal e a humanidade, vocês escolherão quem? Os politicamente corretos já escolheram: querem a Arca sem Noé, querem promover o sexo anal e o aborto para provocarem o fim da humanidade!


Louis Phillippe Banzé escreve na Falha de São Paulo às quintas-feiras. É teólogo profissional e consultor nas horas vagas.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Dias de Nietzsche em Turim




Dias de Nietzsche em Turim, esse sofisticado filme de Júlio Bressane (2001) não é um filme sobre Nietzsche. É um filme-Nietzsche em Turim em 1888, onde o diretor é um ouvinte-artista, lugar onde muitas vezes a câmera assume o lugar da subjetividade do filósofo e a obra assume sua estética, marcada principalmente pelas cores amarelo ocre e azul. Lento, contemplativo, filosófico, causa estranhamento naqueles que estão acostumados com tiros e perseguição californicadoras e orgias emocionais vulgares, mas de fina estampa. É para paladares aguçados, para poucos. O roteiro é da esposa de Bressane, Rosa Dias, professora de estética na UERJ.
Mais do que “sobre Nietzsche”, o filme se faz “com Nietzsche”, é sua filosofia que se sobrepõem à obra, que também assume ângulos inusitados, fragmenta a narrativa com paisagens da natureza, imagens de chafarizes que se tornam mulheres sensuais, estátuas homéricas que evocam sons do mar, curvas de colunas que lembram curvas sensuais de mulheres, chegando a filmar do teto, do chão e finalmente, inverte-se todo um plano para ilustrar a filosofia de Nietzsche, mestre em inverter perspectivas. Não é o conteúdo que ilustra a filosofia de Nietzsche nesse filme, é a linguagem cinematográfica, que busca um “cinietzsche”. No período de Turim, Nietzsche escreve Ditirambos de Dionísio, Crepúsculo dos Ídolos e Anticristo, sentindo-se, ademais, realizado em escrever essas obras.
Fernando Eiras é um Nietzsche em estado “outonal”, Mariana Ximenes é Julia Fino, Leandra Leal é Julia Fino, Tina Novelli é Cândida Fino, Paulo José é David Fino, todos componentes da família italiana que hospedava o professor alemão em sua pensão e que foi o seu contato humano naqueles últimos tempos. Foi também Cândida Fino, dona da pensão em Turim, quem observou Nietzsche dançando enlouquecido em seu quarto, com um cacho de uvas na mão e uma máscara de Dioniso. Pascoal Villaboin é o alfaiate que o filósofo encontra, a propósito de vestir-se com um terno que se ajuste bem a seu corpo. A propósito de fazer um terno sob medida, o alfaiate se espanta com o terno malfeito que Nietzsche estava trazendo, não acreditando que existissem tão maus alfaiates. Nietzsche, a propósito dessa passagem, emite sua famosa reflexão: “toda a filosofia ocidental é um mal entendido a respeito do corpo. O corpo é o pensador.”
O filme em si é também uma enorme inversão de perspectivas, que conforma a ironia dramática: de início, mostra Nietzsche feliz com o início de sua repercussão, (tradução de Zaratustra para o francês, cartas de Karl Nortz, Strindberg, palestras de George Brandes em Kopenhague), com a saúde melhorada pelo clima de Turim e da cidade de Nice (que associa com a deusa vitória e com seu próprio nome; a cena em Nice ficou de fora do filme, mas entrou no DVD). Após muitas imagens idílicas, a narrativa cria ao final uma forte reversão negativa de perspectivas com o “effondrement” (enlouquecimento) de Nietzsche.
Como a estética de Nietzsche é muito voltada para a música (para ele a música é a expressão da vontade pura; as coisas são música corporificada), o filme é harmonizado pelas músicas de Nietzsche ao piano, imagens e sua própria voz, uma voz quente e irônica, na verdade uma conversa com o espectador. As imagens/vozes são também complementadas com árias de Wagner (Liebestod), que abre os passeios de filósofo pela bela cidade de Turim, ou por Carmen de Bizet, que ilustra reflexões do texto O Caso Wagner, dentre outros. A música é uma personagem do filme.
É um filme onde o personagem Nietzsche (Fernando Eiras) não fala, apenas dialoga em off numa livraria, com uma vendedora de frutas, mas nunca há diálogos, apenas monólogos, ressaltando a enorme solidão de Nietzsche, mas aproximando a narrativa do espectador, que sente que a voz em off é uma voz amiga, que fala para um ouvinte, é profundamente inspiradora. O motivo-guia do filme é a voz interior do filósofo, sempre lendo trechos de seus livros e cartas.
A respeito de Nietzsche, é sempre preciso interpretar e escolher a sua perspectiva. O meu Nietzsche é esse do filme de Bressane, um Nietzsche compatível com o humanismo marxista: dialética (no sistema de Nietzsche, foi recusada formalmente, mas está presente e rebatizada com o nome de perspectivismo. É a necessidade de contextualizar e relativizar o conhecimento humano); uma estética aristocrática e radical, para a qual tudo que é divino se aproxima com pés leves; uma ética tropicalista para qual um lugar de mistura de raças é lugar de grande cultura, por isso o antissemitismo e o racismo lhe dão vontade de vomitar; para essa ética, quem pode nos libertar das falhas trágicas de um sistema político e social decadente são os lá de baixo: os negros, os judeus alemães, os párias, os índios, as mulheres, os operários, os caipiras. Há subsídio em Nietzsche para contrariar esse meu Nietzsche? Há. Mas não me interessa e contra essa outra interpretação, se aparecer, vou oferecer agônica oposição. Finalizando, algumas de suas frases no decorrer do filme (todas tiradas de Ecce Uomo):

Não foi em vão que enterrei hoje o meu quadragésimo quarto ano, era lícito sepultá-lo –o que nele era vivo está salvo, é imortal. O primeiro livro da Tresvaloração de todos os valores, as Canções de Zaratustra, o Crepúsculo dos Ídolos, meu ensaio de filosofar com o martelo –tudo dádivas desse ano, aliás de seu último trimestre! Como não deveria ser grato à minha vida inteira? –E assim me conto minha vida.

A fortuna de minha existência, sua singularidade talvez, está em sua fatalidade: diria, em forma de enigma, que como meu pai já morri, e como minha mãe ainda vivo e envelheço. Essa dupla ascendência, como que do mais elevado e do mais rasteiro degrau da vida, a um tempo décadent e começo.

A idéia suprema de poeta lírico me foi dada por Heinrich Heine.

Naquele dia em caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana: detive-me junto a um imponente bloco em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei. Então veio-me esse pensamento [Do eterno retorno. O filme de Bressane ilustra essa passagem com uma imagem dos seios de Mariana Ximenes em preto e branco].

Conheço a minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo –de uma crise como jamais houve sobre a terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um homem, sou dinamite.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Carta a um Juiz

Uma carta inédita de Maura Lopes Cançado, publicada na tese de Maria Luisa Scaramello, UNICAMP, 2010.


Rio, 15 de agosto de 1974.
Quero antes de qualquer coisa, agradecer a V. Excia. pelo muito que me tem feito.
Sobretudo por me haverdes livrado da idéia infantil de que um Juiz não era exatamente um ser humano, mas qualquer coisa que se me escapava, algo acima de minha
compreensão, do meu alcance – e principalmente do meu afeto. Ao constatar vossa
humanidade, admiti também que, como ser humano eu vos podia amar. No sentido em
que os seres, verdadeiramente humanos, são amáveis. E V. Excia o sois, sei-o, e sinto-me muito feliz com isso porque assim não vos temo, quero-vos bem, muito bem – ainda vossa lembrança deixa-me comovida. Creio associá-lo ao “Grande Pai”, o Adam
Kadmon dos cabalistas, Aquêle que me pode dar minha própria e exata medida. Isto é
muito bonito. Sim, pois é ainda através de V. Excia. que novos caminhos se me abrem.
Descubro pessoas que me amam, têem-me como gente – e começo também a amá-las,
vendo-as e vendo-me, eu mesma, também assim. Isto é: gente. Ajudam-me a sair do meu
silencio e constatar o quanto estive perdida durante toda minha vida. Refiro-me
especialmente aos médicos da Biopsicologia, aos quais, recomendásteis-me [sic](...) Por mais paradoxal que vos possa parecer, tudo isto – quero dizer: o crime e suas
conseqüências – tornaram-me melhor. Aproximou-me de pessoas lindas (incluo quem
vos leva esta carta (...)), deu-me uma segurança que eu antes desconhecia. Não
imaginais V. Excia. o que significa para mim ouvir do Fernando: - Sua necessidade de
dar e receber foi e é tão grande, que você matou. Já que não podia conter durante mais tempo, dentro de você, tanto amor. Ele devia irromper-se de qualquer maneira. E o seu crime foi um gesto desesperado de amor, Maura. Então eu entendi. E admitindo a dor, parece também que comecei a admitir o amor. (...) Muito obrigada também por me haverdes apresentado o rosto de um Juiz que não saiu de um livro de Kafka. Obrigada porque sois gente. Tudo isso é deveras surpreendente. Eu esperava um Juiz terrível, um semi-deus, cruel em sua frieza. E vos associava a idéia de Deus que me foi imposta na infância. V. Excia. Aparecesteis-me. Julgáveis-me. Mas principalmente buscáveis entender-me. Eu que fui julgada cruel e injustamente durante toda minha vida, não sabia então como existir. As coisas sempre me vieram por caminhos imprevisíveis. Precisava dizer-vos tudo isto. Muito mais ainda. Não o faço para não cansar-vos. Falo-ei em meu livro. Peço-vos perdão por não conseguir manter-me reverente como geralmente se entende reverência. Perdoe-me dizer-vos o que sinto e ano pensais que vos adulo antes de fazer-vos um pedido. Não pode ser adulação porque é verdade. Sr. Juiz faça de conta que lhe escrevo outra carta. O tratamento Excelência limita-me, é-me insuportável, dispense-mo, lhe peço. Eu tentarei escrever como sei fazer porque assim sou mais eu. Há um curso de Tragédia e Comedia Gregas (envio-lhe o recorte). Eu amo a Grécia, sou apaixonada pelo teatro grego, tenho em casa as peças de Sófocles, Esquilo, Eurípedes e Aristófanes. Meus conhecimentos, adquiri-os sozinha, jamais tive alguém que me orientasse nesse sentido. Este curso me será útil em minha literatura e tudo mais. Ate
mesmo em minha vida cotidiana. O curso começa amanhã, sexta-feira, dia 16. É apenas
uma vez por semana, às sextas-feiras, de 14 às 16horas. Não creio que minha freqüência
a esse curso possa prejudicar o sistema disciplinar da casa, levando-se em conta que
algumas presas saem semanalmente e passam ate dois dias em casa. Uma delas tem seu
carro na porta da cadeia, dirige-o, inclusive viajando para outro Estado. É uma
infinidade de coisas verdadeiramente escandalosas – que prefiro não mencionar.
Segundo pedido: lá fora eu estudava línguas, interrompi ao ser presa. Queria continuar a estudar inglês e alemão (que me são demasiados necessários),os professores viriam aqui, duas vezes por semana. (...) Se o senhor não concordar com meus dois primeiros pedidos, atenda-me pelo menos um deles. (...)Escrever-lhe-ei outras cartas num livro. Já comecei, seu título é Cartas a um Juiz. Trata-se de um livro de contos, cada conto é uma carta dirigida a um Juiz. A propósito, tenho lutado para arranjar um local onde possa escrever aqui. Davam-me uma sela só para mim. Agora tiraram-ma. Meu filho está lutando para que ma dêem de novo. Mas isto é ainda secundário, não posso pedir-lhe mais. Não sou datilografa, escrevo às carreiras, a pessoa que deverá levar-lhe esta carta está esperando. Não posso passá-la a limpo, peço desculpas por estar bem escrita. Queira-me bem – é o meu pedido mais insistente. Maura Lopes Cançado (Processo
penal, fls. 157, 158 e 159).13