quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Hitler Terceiro Mundo

Hitler Terceiro Mundo

Análise fílmica

1. Primeira parte

Ficha técnica

Produção, direção e roteiro: José Agrippino de Paula

Fotografia: Jorge Bodanzky

Montagem: Rudá de Andrade e Walter Luís Rogério

Cenografia: Sebastião de Souza

Música: Ivan Mariotti e Judimar Ribeiro, Frank Zappa (free jazz), Charles Anjo 45 (Jorge Benjor)

Elenco: Jô Soares, José Ramalho, Eugênio Kusnet, Luiz Fernando Rezende, Túlio de Lemos, Sílvia Werneck, Maria Esther Stockler, Ruth Escobar, Jairo Salvini, Danielle Palumbo, Jonas Mello, Carlos Silveira, Fernando Benini, Manoel Domingos

Ano de produção: 1969.

São Paulo, 90 minutos, 16 mm, preto e branco.

O filme saiu em DVD em 2005 Heco Produções – Desenvolvimento: Finotti.com

Gênero: filme político

Hitler Terceiro Mundo é um filme político que, como Cara a Cara de Júlio Bressane e Manhã Cinzenta de Olny São Paulo, são inspirados no filme Terra em Transe de Glauber Rocha. Para tanto, há um recurso alegórico: Hitler e seus seguidores simbolizam a ditadura militar brasileira. O filme é sobre a ascensão de um imitador de Hitler ao poder em um país do Terceiro Mundo. Só que ele surpreende ao partir para a ficção científica, dando a entender que o terceiro mundo não é um país (como o Eldorado de Terra em Transe) e sim outro planeta inteiramente diferente, onde se seguem cenas bizarras e não-realistas como num filme de ficção científica.
Como em Terra em Transe, o som das cenas parece trocado e o que se passa em uma cena quase sempre não tem ligação com o som, apresentando, então, um distanciamento crítico. Os diálogos são em off e sempre entrecortados por sons de animais, free jazz, ponto de macumba (como em Terra em Transe, cuja trilha sonora mistura ao mesmo tempo macumba e ópera). O som é um personagem à parte, que comenta as imagens como se fosse um personagem externo, provocando um efeito de distanciamento crítico. O filme faz uma utilização absolutamente não-realista do som, assim como, para desenvolver a trajetória do ditador nazista que ascende ao poder, ele gera uma narrativa não-realista e fragmentária, contrapondo tanto aliados do ditador (um samurai japonês) quanto seus opositores (o rapaz que aparece na cozinha, numa sequência no início do filme, é carregado como uma peça de oficina enquanto a voz em off teoriza sobre tortura). Em outra cena, Hitler alia-se ao primeiro-ministro conservador do “Terceiro Mundo” e esse primeiro-ministro (com peruca de magistrado) manda decapitar, em nome do comitê central da moralidade, uma madame (mostrando a repressão moralista do fascismo).



Um diálogo do filme:

Voz em off: o golpe de estado será executado pelo robô. Adolf Hitler ainda é um conservador democrata. Morte ao primeiro-ministro! Fascismo radical!
Outra voz: Trata-se de um cientista de alto nível. Foi recomendado pela central de golpes de estado do terceiro mundo.
Voz em off: Ótimo. Liga o robô! Liga! Liga! (Som de soldados marchando, gritos marciais para apresentar armas).
Outra voz: Tem medo de barata? Não? Tem medo de avião? Tem medo de cobra? Não! Estou comendo cobra, tem gosto de peixe. Os japoneses preparavam cobras alho e óleo. Não! Adolf! O povo procurava isso, então surgiu ADOLF HITLEER! (O robô de Hitler sai marchando e atirando dentre de um prédio que insinua ambiente futurista. Ouvem-se ruídos estranhos, metálicos e entrecortados).

2. Segunda parte

Protagonista: Um caricatural Adolf Hitler sobe ao poder num golpe e suas consequências num planeta chamado Terceiro Mundo, protagonizando situações bizarras e surrealistas. O filme é composto de várias sequências que exploram diferentes situações ligadas a esse golpe nesse estranho “planeta” que simboliza o Brasil de 1968. Hitler Terceiro Mundo é uma ficção científica política.

Tensão principal, culminância e conclusão: a tensão principal é entre Hitler e os demais personagens: O Coisa, personagem de história em quadrinhos, que tenta pular de um prédio após o golpe, depois de participar de estranhos rituais junto de Hitler e de um pênis gigante; o caricato juiz que se dispõe a agradar Hitler; os vários personagens jovens, muitas vezes nus, que discutem, de forma entrecortada e oblíqua, o destino dos opositores de Hitler, que são chamados de “terroristas”. O Samurai japonês que, na favela e em outros ambientes, ameaça as pessoas com sua espada e aparentemente é aliado de Hitler. O clímax é quando Hitler afirma: “eu sentei de pijama na varanda de meu palácio e não vi nada, apenas o carnaval, miséria e morte”.

Ironia Dramática: Hitler Terceiro Mundo é um filme que trabalha com o distanciamento entre imagem e som, assim como rompe com a representação realista e a narrativa linear. O filme apresenta um interessante diálogo com a prosa de José Agrippino, representada por textos como Lugar Público e PanAmérica, publicados nos anos 60. São textos também fragmentados e não-realistas, misturando muitas vezes elementos culturais eruditos ou de massa e colocando-os em situações absurdas, o que dá a entender que José Agrippino (que é o diretor) buscou transpor sua escrita e suas preocupações literárias para a linguagem cinematográfica.

Características dos personagens: Hitler é uma paródia caricatural de um ditador pobre e mal-vestido. Ele é visto vestido com poucas roupas e somente a suástica no braço. Exceto Hitler, o Coisa e a Madame, os demais personagens não têm nome e encenam situações estranhas e inusitadas diante da câmera, que chega a filmar de cabeça para baixo. Hitler toma o poder através de um robô-Hitler; um dos guerrilheiros, no início do filme, fica paralisado e é levado como um objeto; o personagem A Coisa, após participar de rituais com um pênis gigante e Hitler, decide suicidar-se pulando de um prédio, mas é preso pela polícia. Numa das cenas, a mãe de um condenado político vem pedir clemência para Hitler dentro de um banheiro. Hitler a atende enquanto escova os dentes. E, no final, enquanto Hitler se decepciona com a miséria do “terceiro mundo”, o Samurai é atingido por um outro arrivista na favela e termina praticando um enfurecido haraquiri diante de uma televisão.

3. Observações finais e conclusão

Hitler Terceiro Mundo, embora tenha relação com Terra em Transe de Glauber Rocha, é enquadrado geralmente como parte do chamado cinema marginal, pois sua proposta, embora também política, inclui elementos da cultura pop, foi um filme que não teve a distribuição comercial (só foi exibido numa mostra aberta ao público em 1984) e cujo protesto político é deslocado em prol da experimentação com a forma. Agrippino utilizou elementos da peça que estava montando então, Rito do Amor Selvagem e também tentou transpor seu universo dos livros para o cinema. Em comum com o cinema marginal, esse filme tem como locações prédios em construção, periferia de São Paulo (favelas, lotes vagos) e preferência por situações grotescas, fora da realidade, utilizando a paródia e o sarcasmo. Nesses filmes abundam citações, imagens recicladas; o humor e a sexualidade têm papel importante.
Pouco conhecido em seu tempo, o escritor multimídia José Agrippino de Paula, diretor desse filme realizado com baixo orçamento, de forma claramente precária, sem roteiro linear, mas com muita criatividade, foi reconhecido por Caetano Veloso como uma das grandes influências em suas canções da fase pioneira da tropicália.
Hitler Terceiro Mundo é a realização do projeto do diretor de fazer um filme na época da montagem da peça teatral Tarzan III Mundo: O Mustang Hibernado. O filme e a peça compartilharam várias cenas. Como curiosidade, o filme tem a participação de Jô Soares no papel de um samurai que se suicida. Jô não tem diálogos, só dá gritos e gemidos. O filme estabelece um interessante diálogo com seu estilo nos textos, para quem conhece os livros de José Agrippino de Paula.

Um comentário:

Maxwell Soares disse...

Fiquei curioso. Já entrou para minha lista. A respeito de sua análise "Quando Nietzsche Chorou", também, fiz uma para o blogger para compor a Sessão Nietzsche que já está chegando ao fim. Um abraço...