sábado, 23 de abril de 2011

Comendo Rui Mayer: o lobo do lobo do humanismo

(Abaixo, uma crítica que escrevi sobre o livro Letras Canibais, de Rui C. Mayer, da Editora Autêntica, 2004).

Como o prefácio afirma, esse é um livro inspirado em Oswald de Andrade e sua crítica ao messianismo filosófico e religioso. Rui Mayer estaria inspirado em Oswald de Andrade em seu combate contra a educação para a salvação, a educação messiânica inspirada em Cristo e Marx.

Mayer primeiro explica o ponto principal de sua crítica: ele critica (fala mal) do humanismo em educação. Para tanto, ele busca subsídio nos textos de Nietzsche, Foucault e Deleuze. E elege um ídolo para ser destruído a golpes de martelada: Paulo Freire. A crítica desse nietzscheano a Freire vai diretamente ao núcleo de seu pensamento: sua concepção de que a educação precisa humanizar.

Para Mayer, o humanismo de Paulo Freire seria uma síntese entre marxismo e cristianismo, síntese essa que ele associa com o ecletismo que a filosofia brasileira teria como característica negativa. Ele escreve isso sem refletir sobre o fato de que essa síntese também está em Oswald de Andrade ou até mesmo em Theodor Adorno (que fundem Nietzsche e Marx).

Logo no início de seu texto, Mayer, como muitos nietzschianos, anda rápido demais em considerar que Nietzsche nunca foi antissemita. Ora, Nietzsche falava mal dos judeus, sim, mas também dos antissemitas.

Mais grave é a insistência com que Mayer abraça o horrendo conceito de “totalitarismo” de Hannah Arendt, monstro que só traz confusão, para atacar a dialética hegeliano-marxista. Esse conceito permite que se classifique “nazismo/comunismo/imperialismo” num mesmo conceito, a partir do qual se pode subentender que existe um “nazismo de esquerda”!

Esse conceito ("balaio de gatos") é o contrário do que a pedagogia deveria ser, no entender de Mayer: mais técnica, mais científica, atenta ao positivismo e à técnica. Os nietzschianos também deveriam cobrar rigor científico do próprio Nietzsche e submeter algumas de suas teorias à prova da verdade científica: será que um biólogo sério chancelaria a idéia de que o homo sapiens será superado antes de destruir a vida no planeta? Como educar para criar super-homens ou além-do-homens? Fernando Henrique Cardoso teria algo a acrescentar ao nietzscheísmo (uma vez que ele foi citado indiretamente em Letras Canibais) graças a sua trajetória de professor (“fraco”) a presidente (“forte”)? Critiquemos a Verdade e a Razão, mas atiremos nosso martelo também sobre os templos da deusa Mentira, meus caros!

A leitura que Mayer faz de Freire é interessante justamente para que se possa conhecer melhor o pensamento de Freire, que demonstra notável sobrevida a essa crítica, o que torna o livro muito divertido, pois quando mais Mayer bate em Freire, mais o pensamento dele rende e demonstra riqueza. Freire mostra que sabe que será objeto de uma crítica cruel, por exemplo, quando define que os oprimidos têm como ideologia o masoquismo e os opressores se deliciam com o sadismo. Ora, o Sr. Mayer provavelmente aprecia Sade e chega a citá-lo.

O próprio Nietzsche, como se pode depreender dessa leitura, não desconhece a dialética do senhor e do escravo e muito provavelmente pensou nela ao escrever sobre a moral dos senhores e a moral dos escravos. O resultado do empreendimento de Mayer, em determinados momentos, resulta em seu contrário: demonstra a vitalidade do pensamento de Freire, que já traz o melhor que a vertente de Nietzsche/Foucault/Deleuze tem a oferecer (“a unidade na diversidade”), assim a força da articulação entre Hegel e Marx. Salta aos olhos, em muitos momentos, que o pensamento do Nietzsche, se pode ser usado como lança para parar o coração do humanismo, precisa de Marx e Freud para poder atingir sua superação histórico-concreta.

Por exemplo: quando trata de Sócrates ou do socratismo, Mayer responsabiliza um indivíduo pela decadência da cultura grega (tragédia e música). Ora, é claro que um fenômeno cultural nunca se deve somente ao pensamento de um indivíduo. Se a cultura grega decaiu, é evidente que existe toda uma crise das estruturas econômicas e políticas que a antecedeu. É preciso, então, à moda de Althusser (um marxista anti-humanista!) dissolver o sujeito Sócrates nas estruturas, desculpabilizá-lo. Para Adorno, em A Dialética do Esclarecimento, o trabalho da razão contra o mito pode ser encontrado em passagens como a das sereias em A Odisséia.

Se o Sr. Mayer é contra a dialética, termo que, embora de origem grega e heraclitiana, ele a associa unicamente com Sócrates/Platão/Hegel/Marx. O autor orienta-se, então, em opor radicalmente Nietzsche a Hegel e seus seguidores: Freire e Marx. Ao recusar a dialética, não consegue negar Paulo Freire de forma a agregar algo daquilo que está criticando. Ao tratar especificamente de Paulo Freire, o tom do texto se torna ácido e irritado; os argumentos muitas vezes são cruéis e buscam degradar o pensamento de Paulo Freire, chegando a chamá-lo de “eurotupiniquim”, “brazilian jazz”, “Chico Xavier”. Ao tratar de Marx, cuida de fazer a divisão entre jovem e velho Marx, assim como toma distância dele, assumindo o ponto de vista de um “marxiano”, alguém que estuda Marx, mas não é marxista. Muito me apraz esse tipo de análise de Marx, mas gostaria também de ver surgirem os “leninianos” e “stalinianos”, pois a simples menção do nome desses dois políticos remete, imediatamente, a uma filiação política do estudioso.

Quando o Sr. Mayer supõe que Freire, em Pedagogia do Oprimido, seja um gramsciano de centro, está mirando, mais do que num pensador, num partido: o PT, cujo embasamento atual remete fortemente a Gramsci. Pois se pode ler em Pedagogia do Oprimido uma posição claramente de esquerda revolucionária: fala-se em Che Guevara, na revolução cultural de Mao Tsé Tung, no padre e guerrilheiro Camilo Cienfuegos. A evolução de Paulo Freire, de Educação Como Forma de Liberdade para Pedagogia do Oprimido seria no sentido de deixar um hegelianismo nacional-desenvolvimentista para uma radicalização política marxista que se aproxima do maoísmo e do guevarismo.

Mayer, para poder afastar a pecha de reacionário, uma vez que esse livro dirige-se, de espada desembainhada, contra o humanismo marxista, declara-se revolucionário na linha de Georges Sorel, teórico que, inspirado em Nietzsche, admirava tanto Proudhon quanto os monarquistas. Essa posição política parece ser pseudo-revolucionária, ou seja, própria de um capitalista que deseja um capitalismo desenvolvido e critica o capitalismo com os valores desse mesmo sistema: competitividade, livre iniciativa, o individualismo e a meritocracia.

4. Conclusão

O texto Letras Canibais é uma original e muito boa iniciativa de criticar o humanismo em educação. O livro passou praticamente em brancas nuvens quando foi lançado, em 2004. No entanto, apresenta uma contribuição que precisa ser analisada. O texto é muito melhor em criticar o seu objeto do que em propor alternativas, pois ele desmorona diante da chance (antiacadêmica) de propor ciências super-humanistas e sonhar uma educação para criar super-homens. De inspiração oswaldiana, ele termina devendo menos a Oswald do que a Foucault e a Deleuze. Sem superar Nietzsche, faz uma leitura brilhante de seu pensamento e, ao colocá-lo contra Paulo Freire, faz a obra de Freire gritar, ranger e quase explodir, mas não sem que, para irritação dessa crítica um tanto quanto sádica, deixe de desprender algum brilho. Para conseguir a superação histórico-concreta de Freire, talvez Mayer precise remeter à síntese de Nietzsche e Marx presente em Oswald, assim como a Adorno e sua dialética do esclarecimento. Ademais, faltou criticar e buscar a verdade científica das teorias de Nietzsche antes de cobrá-las dos pedagogos e dos humanistas.

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