sábado, 29 de maio de 2010

Rebecca no Trem Fantasma

(Conto editado no livro Penetrália, ed. Dez Escritos, 2005).

Conheci Rebecca na abertura duma exposição: ela era a estrela da festa, embora seus quadros não estivessem expostos. Talvez devesse ter mantido distância dela. Foi ela quem se insinuou, meiga, quase esvoaçante:
- Está gostando?
- Acho que está muito eclético.
- O curador é péssimo. Foi ligando para as pessoas, deixando os artistas trazerem o que quisessem...Para uma exposição que pretendia mostrar os artistas dos anos 80 e 90...Vocês mineiros têm dificuldades em fazer escolhas.
- Talvez precisemos de mais existencialismo aqui em BH.
- Ah, quem sabe.
Eu pretendia testar a moça e extrair dela maiores informações.
- Tem trabalhos seus aí?
Ela me olhou espantada. Com um tom mais arrogante, respondeu:
- Não...Vou expor um quadro meu na semana que vem...
Eu julgava que aquela moça tinha um sotaque que me parecia familiar.
- Você é de Belo Horizonte?
- Não, sou do triângulo.
- E não se considera mineira?
- Não, nós somos um outro estado.
- Verdade? Disse eu, irônico, carregando no “r”.
Ela pareceu impaciente, e mudou de assunto:
- Estou também trabalhando com vídeo.
- Gosta de cinema?
- Não, quero fazer videoarte.
- Como é seu nome?
- Rebecca Matos, artista plástica.
- Eu sou Arcanjo, jornalista e trabalho no jornal O Debate.
Isso não intimidou Rebecca. Ela foi logo ao assunto:
- Estou fazendo um vídeo.
- E daí?
Não sei porque topei, mas logo eu estava andando pela cidade afora no automóvel de Rebecca. Eu senti um certo fascínio por aquela mulher madura, vestida à européia, cabelos com corte chanel. O sotaque do interior mineiro, por outro lado, me irritava. O ar em torno de Rebecca era carregado, como se ela drenasse energia. Isso me incomodava e me dava vontade de falar, falar coisas.
- Sabe, Rebecca, não sou crítico porra nenhuma.
- Como assim?
- Sou jornalista, mas trabalho na seção policial.
- Nossa, nunca leio...
- E o que você lê.
- Ah, eu sou mística.
A minha fala, a respeito de suas leituras, era intencionalmente agressiva. Eu queria ferir com palavras: havia Lauro Trevisan e Richard Bach no porta-luvas do carro.
- Está aprendendo a usar o poder infinito da sua mente?
- Como?
Silenciei por longos momentos. Ela dirigia dispersa, eu temia um acidente.
-Basta negar seus problemas e eles sumirão.
Rebecca soltou a frase de repente. As palavras me pareceram pombos saindo da cartola.
- Isso é irracionalismo.
E foi a vez de Rebecca se calar. Estávamos chegando ao parque. Eu não quis revelar minha atividade no jornal O Debate. Aliás, O Debate era um tigre de papel, vivia decadente, dependendo de verbas da Assembléia Legislativa para se manter. E eu conseguira um trabalho: ligava para as casas das pessoas pegando os dados dos falecidos. Fazia a seção de óbitos. Era bem pior do que a seção policial.
- Eu costumava jogar cartas.
- Verdade?
Esta palavra, dita por ela sem sotaque e sem ironia, ganhava um sentido insuspeitado: Rebecca acreditava em mim.
- Só de brincadeira...Ganhei do meu tio um livro místico. Falava de celtas, druidas, essas coisas. E junto veio um baralho.
- Ah, Arcanjo, eu acho que acredito em tudo...Nossas almas, elas vieram de outros planetas. Existiu um planeta chamado Antares, e as almas dos habitantes vieram penar aqui, neste vale de lágrimas.
Devido a meu nome, Rebecca passou a achar que eu era religioso. Começamos a fazer as imagens de seu videoarte. Eu tinha sugerido um parque de diversões bem afastado, pobre e mambembe.
Começamos: eram ingênuas, naïf, exageradas, mas eram cenas que mostravam algo entre a cultura popular e a cultura de massa. Tinham algo de destroços de um mundo antigo, fósseis de uma pureza que calava fundo. A primeira tomada foi no trem-fantasma, um caixão se abria, exibindo um esqueleto que se levantava. Lá dentro, mesmo na penumbra, pude ver uma gata e sua ninhada de gatinhos. O estofo vermelho e convidativo a trouxera até ali. O cenário era um cemitério nevoento, com árvores esgalhadas ao redor. Outros esqueletos se erguiam, mortos-vivos, numa dança macabra em homenagem àquele que renascia. A gata miava pungente. Aquilo doía, sei lá por quê.
A seguir veio uma teia, contendo uma aranha negra enorme. O quadro pintado ao fundo insinuava que a aranha estava próxima a uma casa tranqüila, uma casa de campo. A aranha tremia na teia de plástico. Suas patas e o corpo tinham a aparência da aranha-caranguejeira, paradoxalmente, uma aranha não-venenosa. Seria essa aranha um símbolo da genitália feminina? Os criadores do trem-fantasma não deviam conhecer Freud - e deviam temer igualmente aranhas, comunistas e cobras.
Um macaco gigantesco, inspirado em King-Kong, era a imagem seguinte. Rebecca teve medo e eu tive de fazer a maior parte das tomadas. Os olhos do símio se tornavam vermelhos quando o trem estava ligado. Naquele filme antigo, o macaco era nitidamente masculino, e seqüestrava uma mulher bonita. Julguei que a criatura do trem-fantasma era um austrolopitecus fallicus. O olho do animal enchia a tela; a cena em que ele estava encaixado fazia com que pudéssemos vê-lo na semi-escuridão, com leves tons de vermelho a tingir-lhe a cabeçona que se erguia do chão. A imagem, vista de relance, emergia de algum lugar do cérebro e não de um brinquedo de parque infantil.
Decidimos terminar por ali as imagens. Eu e Rebecca nos despedimos, e eu lhe dei meu endereço e telefone.
- Em breve uma obra minha entrará em exposição no Palácio das Artes. Quero ter ver no coquetel, disse ela.
Esta última afirmação me passou desapercebida, e fora feita de maneira enérgica. Eu resmunguei qualquer coisa e deixei-a no ponto de ônibus. Ela me deu um beijo bem próximo da boca, segundos antes de chegar aquele bólido vermelho:
- A gente se vê.
Dias depois, recebi um pequeno desenho, emoldurado em papel bege. Tinha uma mensagem escrita a caneta no verso, com uma letrinha miúda e escorreita:

Anjo:

Penso que, se com minha arte eu puder trazer alegria à nós, filhos de Deus, este é meu dever. Amo este mundo, acho que este mundo é lindo e cheio das coisas de Nosso Senhor e às vezes estou alegre, às vezes triste. Estes momentos de solidão são parte da vida e não devemos reclamar. Estou esperando você, quero que vá ver a exposição que inauguro no próximo dia 13. Não se importa que eu o chame de “anjo”, somente? Tomara que não...

Beijos carinhosos da Rebecca

BH, inverno de 1997

Do outro lado, havia um desenho do viaduto da Lagoinha. Era um singelo desenho com tinta guache, mas anunciava mais do que um flerte com a pintura abstrata, arte que para mim não merece muito mais consideração do que quaisquer rabiscos infantis. No desenho o viaduto se desmilingüia numa névoa cinza e alaranjada. O viaduto em si se tornava, no quadro, uma espécie de rio gelatinoso cercado de palitos ameaçadores e sombrios. Afastei a ilustração com desprezo e tédio.
Dias depois, entrei no Palácio das Artes, disposto a ver a obra de Rebecca. Tropecei num carrinho de supermercado que estava sendo exposto. Continha grama e torrões de terra. “A verdadeira instalação é o mundo”, pensei, me lembrando dos catálogos da Bienal de São Paulo.
- Quero ver a face feminina de Deus.
Minha amiga Rebecca começou a me revelar com mais profundidade seus conhecimentos místicos. Eu ouvia tudo silencioso, complacente:
- Sempre quando estou pensando em algo prejudicial, coloco a unha do indicador no polegar e aperto até machucar, até que este pensamento passe.
- Fale mais sobre a deusa com a qual você quer se encontrar...
- Não é deusa. É Deus. As grandes religiões, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo têm sacerdotes homens. Os homens impõem os dogmas.
Silenciei de novo. Eu ouvia tudo como quem ouve uma confissão. Rebecca usava uma camiseta onde se lia I love New York e tênis puídos.
- Olhe aquela obra ali. Chama-se O Círculo de Giz Caucasiano.
Olhei naquela parede, sem disfarçar minha preguiça e displicência. Vi ali um quadro onde um círculo fora traçado com pinceladas violentas, com tinta vermelho-hemoglobina, sobre um fundo branco. Em cima do círculo pintado, Rebecca havia pregado outro círculo, este de arame, e que ultrapassava os limites da tela. Aquele quadro me pareceu ilustrar uma ausência completa de regras e limites que devia fazer parte da personalidade de Rebecca. Desviei o olhar para outra obra, uns molhos de macarrão mofados que jaziam em cima de prateleiras. Observando meu desinteresse, Rebecca sentiu-se atingida:
- Há três tipos de amor, Eros, Philos e Ágape. Se vocês jovens puderem fugir da hipocrisia do amor que tinha a geração passada, poderão usufruir do Eros bom. O Eros é o amor carnal, o Philos é a amizade, e Ágape é o amor destruidor, devorador.
Dada a diferença de idade existente entre mim e Rebecca, senti que se dizia de uma outra geração. Ela já revelara que fora hippie e desbundara alegremente nos frenetic dancin’ days.
- Não quer me levar até lá em casa?
Finalmente, Rebecca fez a pergunta lancinante. Logo que subi ao apartamento, um novo convite sucedeu o primeiro:
- Não quer ficar para um vinho?
Após várias taças, nos deitamos no sofá para ouvir seus discos de canto gregoriano. O estado eufórico provocado pelo álcool me fez bolinar Rebecca, ela logo estava se abrindo toda. Insisti para que ela desligasse o som e apagasse a luz, mas Rebecca estava já obcecada com a comunicação não-verbal do sexo. Deitou-se e misturamos nossos doces quentes.
Na manhã seguinte me despedi de Rebecca e peguei um táxi até o centro da cidade. Ela tentou me segurar mais tempo, mas me sentia cansado, exausto, e a sensação, além de física, era espiritual. Quando o táxi passou diante do lugar onde estivemos no dia anterior, decidi descer, pois meu dinheiro não dava para finalizar a viagem. O passeio em frente ao Palácio das Artes se fez fantástico: senti que havia um mistério na Grande Galeria, um mistério que levantava agora o véu para que eu o pudesse contemplar. Num piscar de olhos eu estava diante do quadro que eu vira na noite anterior, o Círculo, e o chão me fugia aos pés. Aquele círculo vermelho era um útero aberto, sangrento, um berço esplêndido, o círculo de arame representava o corpo carnal e efêmero, e a imagem do útero resplandecia, o grande mistério ali repousava mas não se entregava a mim nem assim, escancarado, fingido, representado. Eu me vi na pele de um César que abria a barriga da mãe e encontrava, assombrado, uma lufada de vento quente ali trancada.
Fugi assustado, com as roupas empapando de suor, perambulei como um zumbi pelas ruas do centro da cidade, meu corpo funcionava no piloto automático. Somente depois de chegar ao meu apartamento me acalmei, e me dei conta de que vivera aqueles últimos instantes como as formigas da minha infância, as formigas saúvas das quais eu arrancava a cabeça, e restava delas o corpo tremendo, mexendo as patas sem sentido, andando para lugar algum, sem remédio.

Um comentário:

Anônimo disse...

escrever é realmente para poucos, como é difícil escrever!