terça-feira, 16 de março de 2010

A Outra Face de uma Canonização



Rodrigo Mehreb

O Tempo, 17 de fevereiro de 1997

Paulo Francis obteve depois de morto uma unanimidade nunca alcançada em vida. Pelo menos na imprensa. Seus desafetos se recolheram ao anonimato ou foram deixados lá. Os leitores travaram contato com uma personalidade até então desconhecida: gentil, dócil e humildade. Para aqueles que como eu não desfrutaram de seu convívio foi como se, numa situação hipotética, alguém anunciasse uma semana antes que o também falecido Antonio Callado tinha um outro lado arrogante, intolerante e prepotente. Graças aos amigos fomos informados que aquele Paulo Francis dos jornais e revistas era apenas um personagem. Enquanto isso na seção de cartas dos jornais sobrevivia o jornalista polêmico que dividia opiniões. Alguns missivistas perceberam um processo de canonização em curso e trataram de debater a imprensa por mais uma vez misturar o público e o privado.
Não dá para discutir juízos de valor subjetivos do tipo “o maior”, o “último”, o “único”. O problema foi que na ânsia de demonstrar que o Brasil sofreu uma perda irreparável alguns amigos andaram atropelando os fatos. O escritor Diogo Mainardi, por exemplo, num texto tão curto quanto impreciso, achou de afirmar que Francis sempre escolhia o lado errado. Depende do lado por onde se olha. De fato, ele se expôs como poucos durante a ditadura, apesar de ter ido embora por vontade própria. No entanto, o pensamento de esquerda era o hegemônico entre os intelectuais daquela geração. Quem remava contra a corrente no plano teórico era Roberto Campos, mais tarde idolatrado por vários ex-esquerdistas, inclusive o próprio Francis. Essa guinada à direita tampouco foi quixotesca. Apenas refletiu uma vitória ideológica do neoliberalismo, esboçada desde o final dos anos 70. Por conta dessa conversão, Paulo Francis colloriu desde a primeira hora, o que fez seu “esperneamento” posterior contra o confisco, um gesto no mínimo irrelevante. Mainardi também enfatizou que ele atacou “solitário” Fernando Henrique Cardoso. Talvez por não ser leitor assíduo do Diário da Corte, só me recordo do apoio explícito dado a FHC em diferentes ocasiões. Mas, se os ataques existiram, só seriam solitários e os textos de Carlos Heitor Cony, Jânio de Freitas, Luiz Fernando Veríssimo e Nelson Werneck Sodré fossem fruto de alguma hipnose coletiva. De resto, Mainardi ainda encontro tempo para dar aos brasileiros o título de campeões da bajulação e da subserviência. Uma boutade tipicamente franciniana, tirada do colete como homenagem póstuma.
O esnobismo de Paulo Francis que tanto encantava pessoas como Diogo Mainardi trazia embutida uma contradição curiosa. Grande parte de seu público não era composto de uma aristocracia do pensamento e sim setores de uma classe média ou elite bem nascida, porém preconceituosa e ignorante que certamente se reconhecia na classificação dos nordestinos como sub-raça; na chacina da Candelária rebatizadas de faxina ou no desejo manifesto de dar umas chicotadas no “escravo” Vicentinho. Em alguma zona cinzenta entre o ballet e o Esquadrão da Morte repousava a tribuna de Paulo Francis que agradava uns, agastava outros e apenas entediava um terceiro grupo cada vez maior.
A mais pranteada morte dos últimos tempos na mídia sucedeu em uma semana a de um outro jornalista de importância no mínimo igual e romancista superior: Antonio Callado teve o Brasil como motivo central de seus livros e artigos que tanta falta fazem aos sábados. Seu diagnóstico embora afetivo nunca era alentador ou otimista. No recente vídeo “Quatro Antônio e um Jobim” ele ainda danava contra nossa vocação de país pequeno, corrompido. Ninguém precisou alertar para as nobres intenções ocultas nas entrelinhas. Até que algum amigo ou inimigo venha provar o contrário Callado era aquilo que escrevia.

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