sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Carta de Gunter Axt para Gerald

COMENTARIO ABSOLUTAMENTE COMOVENTE
DE UM GRANDE AMIGO:

GUNTER AXT

Gerald, querido;
Vc produziu um belo texto de balanço de tua obra. Um poderoso desabafo! Raras vezes vê-se nos dias de hoje um artista tão desnudo, tão exposto, tão autêntico, tão corajoso e, sobretudo, tão coerente. Vc vem partilhando com a gente a sua crise, pessoal e profissional, com o teatro, há alguns anos, pelo blog. Graças a esta moderna ferramenta de comunicação, o teu público pôde partilhar das tuas angústias e das tuas dúvidas nos últimos tempos, coisa que, no passado, os artistas confiavam aos seus diários, ou a cartas endereçadas a uns poucos amigos próximos, dramas que chegavam ao grande público apenas anos mais tarde, em geral, anos após a sua morte. Quando vc se remete a Rembrandt, fala em morte e em renascimento. Eis uma conexão instigante: se vc e sua arte morrem em tempo real, on-line, comunicando num piscar de olhos aquilo que os grandes artistas do passado levavam décadas para transmitir, então a chance do renascimento é mais forte do que nunca.
A tua peculiar proximidade a Beckett, experiência para ti de enorme intensidade e vivida por tão poucos, fez dele, creio, uma espécie de alter-ego para vc. Diante disso, entendo que o problema de não ver sentido em continuar é, sim, bastante real e palpável. Pode parecer uma aporia, em se tratando justamente de Beckett, que dizia: “fracasse outra vez, fracasse melhor”. Estranho otimismo às avessas, otimismo encontrado na inversão, haurido da dupla negação, desse pessimista para com a condição humana, condição cujo destino se afiguraria melancólico e desamparado, como que sintetizando o desencanto agressivo de Schopenhauer, proclamando que a vida mais parece uma catástrofe e que a salvação, embora prometida, jamais chegará. Em minha modesta opinião, Beckett revolucionou o teatro não apenas pela sua técnica e pelo seu estilo únicos. Mas porque ele conduz, com estonteante naturalidade, seus leitores às fronteiras da razão, instaurando a instabilidade absoluta – e absurda – do Humano, que, como dizia Ortega y Gasset, está pela primeira vez na História integralmente diante de si mesmo, sem a âncora identitária do passado a lhe guiar os passos para o futuro, precisando, por isso mesmo, de uma nova revelação. Ortega era um conservador que preconizava a idílica restauração da erudição, a reconciliação reacionária com a tradição. Vc entende Beckett muito melhor do que eu, mas eu sempre achei que, bem ao estilo irlandês, ele seria irreverente de mais para um niilismo satírico à la Kafka, ou para, como Gasset, levar água ao moinho do discurso conservador. Joyce sinalizou para esta nova revelação, ao celebrar, em seu magnífico Ulisses, apesar de toda a deliciosa ironia obscena, o poder construtivo do homem comum, libertado, justamente, pelo século XX que, para Gasset não passava de uma rota expressa para a decadência. Creio que foi com este valor que Beckett dialogou, antecipando um mundo onde a verdade estaria erodida e a relatividade do signo estabelecida. É nesse contexto que o absurdo limiar do pensamento racional converte-se em poderosa ferramenta de libertação, pela confrontação do establishment, pela desestabilização dos sentidos. Sim, L.H.O.O.Q, cinco letras que em 1919 questionaram todos os alicerces da arte ocidental. A “loucura do inesperado” bombardeando a “arte da retina”. Ou o caos organizado do Caberet Voltaire como reflexão enfurecida sobre o caos letal fora de suas paredes – esse sim, absurdo! – de uma guerra cujo único objetivo parecia ser a carnificina em massa. Ou Ensor, antes ainda, irreverente, irônico, investindo contra o público apreciador de arte convencional. Não foi Picasso quem definiu o conjunto da arte moderna como uma soma de destruições? Quando Beckett escreveu, os móbiles de Calder, com seu equilíbrio precário, ainda não haviam cumprido o seu papel de tornar mais rasa a fossa abissal entre as vanguardas e o gosto da classe média. Escrevendo em outra língua que não a sua, adotando um outro país de residência, partilhando a diluição das identidades de um indivíduo, o mundo fluído que Backett antecipou chegou. Por que confrontar pela desestabilização do signo se ele já se tornou instável, se o relativismo já se tornou regra, se a verdade deixou de existir?
Sim, o East Village não tem mais a mesma graça. As cidades também cansam, tornam-se presas da própria atitude que ajudam a construir, já que atraem uma massa de viajantes ávidos por fruir a atitude que acabam ajudando a disseminar, mas também a matar. A Nova Iorque do Max’s Kansas City, com Warhol, Iggy Pop, Bowie, com happenings de Rauschenberg, de Simone Forti, Phil Glass, Steve Reich, Michael Snow, Eva Hesse… – não podia ser eterna. A linguagem ali fundada ganhou o mundo. O que antes era um diálogo de um coletivo de jovens brilhantes, hoje está nos mais consagrados museus, teatros e filarmônicas. Pode não ter logrado preencher todos os corações do planeta, mas… Se caras como Richard Serra eram então marginais, hoje se converteram em pontos de referência. E sem terem se rendido àquilo que o mercado então queria deles. Foram coerentes com os seus conceitos e, pelo contrário, moldaram o mercado e o público aos seus conceitos. Algo que vc tb logrou alcançar, Gerald, com eficácia, em diversos momentos. E, enfim, num mundo amalgamado pela rede, onde a lógica da disciplina, tal qual descrita por Foucault, cede rapidamente espaço à lógica das redes, as distâncias diminuem, o tempo se acelera, os centros perdem sentido.
O dramático nisso tudo é que, mesmo com o fim da verdade, com a desestabilização do signo, com dinâmica de rede, com a descentralização, a promessa de realização da herança libertária dos anos 1960 não se cumpriu. E aqui, penso, reside o impasse. Qual é a linguagem capaz de reconhecer as mudanças que aconteceram, e das quais o mundo, em minha opinião, precisava, com a necessidade de manter viva a herança libertária dos anos 60?
Rimbaud, aos 17 anos, em 1871, disse que o primeiro passo para um poeta tem de ser o estudo do autoconhecimento. Este fenômeno cosmopolita que foi o modernismo desde o seu princípio, e no qual Duchamp, Beckett e vc se inscrevem, teve sempre este compromisso da busca da criação no olhar para dentro de si mesmo, sendo a arte uma expressão de sentimentos e sensações interiores. Nada mais coerente, portanto, que vc prestar atenção na sua voz mais íntima.
Tudo indica que a criação, no seu caso, é uma necessidade. Vc fundiu sua vida com o teatro. E um teatro em múltiplas direções: você dirige, atua, escreve, produz, comenta. Despedir-se dos palcos, do blog, é o primeiro passo para libertar-se desse compromisso de vida. Vc só pode encontrar a sua nova linguagem se não se sentir obrigado e compelido a fazê-lo.
Querido, desculpe se me estendi nesta carta. Mas, dessa vez, não poderia deixar de comentar com vc o que senti ao ler o seu texto. Pensei em postá-la nos comentários ao teu texto, mas fico sempre meio envergonhado de fazê-lo. Te mando ela por mail, mas fique à vontade se quiser postar no blog. E tomei tb a liberdade de ligar para a Dona Eva. Simplesmente pq há momentos em que mesmo os homens que são exércitos de guerra de um homem só precisam da mãe.
Love, G

Gunter Axt
http://www.gunteraxt.com/

2 comentários:

jamesp. disse...

Essa carta é real?Putz!Muito interessante.
e aí?Te "vejo'no twitter mas você não 'fala'(rs)
Abraços .

Penetralia disse...

James: até agora não tinha comentado essa carta do Gunter com vc. Olha como é que os acadêmicos, mesmo articulados como o Gunter, são curiosos: ficam "com vergonha" de postar um comentário...Será que acham que a tecnologia é perversa?

Ele colocou alguns pontos importantes: 1) Gerald faz uma leitura equivocada de Beckett e Joyce e que leva água para o moinho de reacionários e conservadores; 2) O centro "New York" tem perdido força e não há o mesmo status em viver lá ; tanto faz a ONU ser em Bonn na Alemanha o em Bom Despacho.