terça-feira, 2 de junho de 2009

Prefácio do livro As Filhas de Lilith

Oi, pessoal. Hoje é o dia das prostitutas! A todas (?) que frequentam esse blog, parabéns. Acho que todas deveriam trabalhar legalmente, carteira assinada, coisa e tal. A gente não se prostitui nas empresas, nas GM da vida, para depois ser mandado embora depois de ter vendido até a alma? Aliás, bem melhor vender o corpo do que vender a alma! Taí o prefácio que a Jussara Salazar fez para o livro da Cida Pedrosa. Ela tão de parabéns, adorei!

Que o leitor não vá imaginar que em Lilith, seu livro mais recente, Cida Pedrosa apenas articula algum tratado sobre o sentido do ser feminino e suas imbricações. Com sua poesia forte e atenta ao mundo, a tudo que lhe cerca, Cida anuncia um universo a partir de si e também o de uma realidade deslocada, fraturada e desenraizada em sua vastidão e amplidão–, espaço que ela abarcou, aprendeu desde menina, acalentando e iluminando os dias e sóis de sua Bodocó, cidade que se estende incrustada no Sertão de Pernambuco, cidade-menina que Cida veste na fala, nos gestos e na imaginação, e que carrega no olhar espraiado sobre a cidade do Recife, onde vive e alimenta seus sonhos.

Das estações solares carrega as alumiações dos espelhos e do desejo, revelados em uma escrita íntima onde revolve e arranca o pudor dos véus que teimam em esconder a humanidade mais humana, e que ela, poeta, acende nos cigarros e no coração de suas muitas personagens, algumas que agora encontramos em Lilith.

Lilith, ou “lua negra”, mito bíblico, teria sido criada por Deus, feita de barro e à noite. Bela e insubmissa simboliza a eterna divergência entre o masculino e o feminino. Feito de carne, osso, sangue, vísceras, pó-de-arroz e batom, a Lilith de Cida Pedrosa articula as muitas dicções das mulheres e significa todas as muitas graces, wilmas, úrsulas, melissas, ofélias e dianas, entre tantas. Elas existem sem o ranço dos discursos forjados e que já nascem sectários, pois o A/Z das personagens é uma construção minuciosamente mapeada na cuidadosa busca de um rosto, o retrato falado, a descrição do “qualquer um ou uma” a cada página – inventário de um corpo que por si explode feminino / masculino: o corpo dele / era feito para a saia e para o justo / e para os homens que gostam de mulher. Ou ainda: xênia / sempre gostou de mulher / no ginásio cubava as meninas / na troca de roupas de ginástica /. Não importa o gênero e alguma moral, pois o lugar para a autora é sempre o da natureza mais descabida e intensa: / deus venha cá / converse comigo /.

Nada que aprisione ou encarcere está em jogo para ela, pois estão cercadas da mais singular liberdade essas personagens de Cida Pedrosa–, e liberdade é um termo gasto e desfeito hoje no mundo, onde principalmente pairam os falsos paradigmas e as palavras de ordem sobre a humanidade feminina. Aqui as palavras reinscrevem sua condição na beleza cotidiana, expõem sua maquiagem, borrada acertadamente para ser o corpo falível e desfeito, para ser aquele da instância do que é mesmo mais humano.

Abrimos o livro: Angélica. o pênis de angélica/ era de plástico/(...) Eis a sina/ mulher ou homem. Angélica é o anjo que anuncia essa atitude in extremis, anuncia a vida ao revés de si, o destino injusto desígnio, a transcendência de um duplo, um corpo possível que se vê, passa a vida no espelho de sua sina, na dimensão do desejo elevado à potência máxima e que não aceita a negação, o desejo que transita no reino da Vida, que é o mundo das personagens de Cida Pedrosa.

E não indagamos se elas existem de fato, permanece muito clara a opção declaradamente amorosa que a autora faz todo tempo pela poesia, seu posicionamento e seu lugar de apreensão, de onde se põe para o desejo, de costas, instaurando uma percepção do outro que somos em toda grandeza da experiência estética e vital que é existir: animal de quatro patas / exposto ao pássaro / e ao sabor das asas.

As águas da poesia de Cida são as que lavam as calçadas na tirania da água, e que varrem a agonia e a escuridão, pois essa humanidade também é o signo de uma luta ou de uma oposição: / e de tão dor / na dor não se basta / e de tão dor / ocupa o mundo / em barulho e resistência / como também é o sinal da força imanente, que em Cida Pedrosa não vacila entre o ser e a opção pelo destino supremo de sua totalidade e não hesita entre shakes, coxas, anjos, putas, anabolizantes, filhos, terapias, terços, tralhas, postais e cânticos, sejam profanos ou sagrados.

A poesia de Cida é feita de um mundo marcado por imagens, matéria que ela usa para pensar sua geometria de versos cuidadosos, cuja feitura ela constrói com apego à palavra, com o gosto pela linguagem, em busca da imagem mais essencial, mais real e palpável: elisa / de olhos quase infantis / olha para o alto / e se perde / naquele teto povoado de ovelhas / próximas ao cajado do pastor/ ou ainda quando: dona fátima vende goiaba na feira. Compreendemos então que a realidade é a matéria que ela coleta nas calçadas, nas igrejas, nas casas, nos ônibus ou nos lençóis onde a vida resiste bela, contraditória e aí Cida recolhe, junta, costura e segue tecendo em detalhes: priscilla / morena olhos claros pernas grossas / levanta o pau da rapaziada / que bate continência e hasteia gozo / toda vez que ela passa saracoteando / dentro de um biquíni amarelo sem bolinhas.

Para Cida qualquer fragmento cotidiano poderá ser o material catado, às vezes com uma sublimação desmedida em que o simples ritual diário de fazer um café será amplificado a cada sílaba, palavra ou verso, e repetido musicalmente, mágico e contemplativo, evocando uma quase filosofia mística da realidade, à maioria das vezes desapercebida aos olhos e aos sentidos: sebastiana coava café muito bem / desde menina aprendeu o mantra / com sua mãe florisminda / os grãos eram escolhidos na feira / em um ritual de sabedoria /.

Ainda há no livro, a marca de uma ironia refinada, dirigida ao mundo com sua máquina mecanicamente programada para satisfazer e diluir sentido e sensibilidade, para jogar a palavra numa periferia onde jazem o silêncio e o conformismo.

Para Cida é preciso provocar e usar, abusar dessa mesma palavra, des-imobilizar a dureza do gesso do bem-estar e do materialismo simplista, para revirar pelo avesso e re-significar os fatos, redimensionando assim o tempo na ocupação de novos espaços e novos desdobramentos sociais e humanos–, ali onde a cultura resiste, é lugar de oposição e também lugar para iniciar uma reconsideração ética a partir daquele que se vê diante de um mundo fragmentado e fissurado, porém aberto a vigorosas interpretações e estranhamentos: gosta de fazer sexo de manhã / (...) entre um ofício e outro / faz a pesquisa na Internet / (a dor não precisa mais dos jornais / e o filme francês é lento para este tempo de baladas).

Cida Pedrosa e suas musas, em Lilith, dilaceram o cotidiano artificial em que vivemos com a profunda delicadeza dos que fazem do ofício da arte um mundo onde as ideias ainda não foram destruídas de maneira absoluta e onde algumas dessas faíscas permanecem à espera de uma chama, de uma salvação, sem o niilismo dos discursos da negatividade e da alienação: / no lugar do amor / um espinho foi cravado / e no sangue de donzela / foram jogadas cinzas / excisão no corpo / de alma já infibulada. Lilith, portanto, é o discurso amoroso de Cida Pedrosa, sua celebração à vida, aqui, uma escrita compartilhada ampla e generosamente com o leitor e o mundo.

JUSSARA SALAZAR é poeta, artista plástica, designer e nasceu em Caruaru, Pernambuco.

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