terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O Fantasma de Maura Lopes Cançado

Eu não sei o que estou fazendo aqui nesse hospício em Engenho de Dentro. Hospício é não se sabe o quê, pois Hospício é Deus. Estou aqui perdendo tempo, anos comem tempo, tempo come carne. Aliás, sei o que engendro no Engenho: estou maquinando todos os mecanismos internos de minha mente, investigando-os, viviseccionando-os. Intelectualizo tudo, mas não quero sair lá para fora, da última vez que fui a Belo Horizonte estava só com a roupa do corpo e um livro do Beckett. Esperando Godot. Talvez fosse melhor não ter nascido. Eu já fui internada como louca, mas agora estou de novo aqui, sinto frio, mas escrevo com um toquinho de lápis, voltei, Deus, loucas, voltei. Cantei Puccini no pátio e chorei com outras loucas rasgadas protagonizando uma ópera insuspeitada. E as loucas respondiam presentes, tocadas pela música. Cantamos, eu e outra louca culta, a Valsa da Musetta. Ao falar com o psicólogo, percebi que ele me desejava e justificava seu desejo dizendo para mim que desejos são algo absolutamente natural. Já tive caso com um psiquiatra e gastei toda minha herança. Não me preocupei com o futuro. O futuro dura muito tempo. Eu me sinto presa no quadrado de Joana. Já morei com uma moça que coletava pedras na praia, já morei com árvores, morei no centro-oeste mineiro, tentei ser piloto de avião, mas não consegui tirar brevê. Deixei o avião cair numa casa: sonhava em estar num avião caindo. Fiquei sem asas para voar. Casei-me com um moço que era também aviador, tive um filho e separei-me. Amava, na verdade, o meu sogro. Insinuei-me, ele nunca percebeu. Ele era comandante de um batalhão de polícia em Bom Despacho e era belo e jovem e sua foto até hoje está no Colégio Coronel Praxedes. Ele era o Praxedes e eu uma adolescente sem práxis que sonhava em trabalhar de espiã para a Alemanha, traindo o Brasil. Sonhei que no futuro um poeta ainda vai ser internado aqui, um poeta bêbado, incognoscível, que apareceu no meu sonho como uma sombra concreta de um nariz em linha reta. Uma sombra concreta. Meu pai morreu quando era muito jovem e deixei mamãe na fazenda. Fui para o Rio. Numa crise, matei uma enfermeira e meu namorado. Hospício são flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore frio, subitamente futuro. É uma cidade triste de jalecos brancos. Sou um anjo com vocação para demônio. Existo desmesuradamente, como uma janela aberta para o sol. Existo com agressividade. Eu gostaria que meu pai e minha mãe, ou os dois, já que ambos tinham a mesmíssima responsabilidade, houvessem refletido sobre o que estavam fazendo quando decidiram me conceber.

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