quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Cioran sobre Beckett

Há anos vi um Beckett com o Armatrux no Parque das Mangabeiras, com bonecos e música. Foi belo, mas lembro somente de flashes, anjos, violões. Era um Beckett doce, tropicalizado.

A Martins Fontes está lançando agora um livro dele, O Despovoador e Mal visto mal dito (68 páginas, vinte e sete reais). São contos e novelas. O primeiro texto, conforme resenha no Estado de Minas, evoca uma utopia às avessas, que ecoa o inferno de Dante; o segundo é uma espécie de réquiem para uma velha enclausurada. O prefácio é de Fábio Souza Andrade, professor da USP, tradutor e especialista na obra de Beckett.

O filósofo Emil Cioran foi amigo de Samuel Beckett em Paris e falou dele algumas vezes em entrevistas:

"Olha, agora nos vemos menos, mas Beckett é um homem que sempre está perfeitamente lúcido e que não reage como escritor. Esse problema não se coloca para ele -- e é muito bonito em todo caso --, porque nunca reagiu como escritor. Ele não é enrolado como nós, que somos "enrolados", está acima disso, tem um estilo de vida próprio, é um caso à parte."

"Beckett vejo de forma distinta, totalmente antibalcânico: um homem discreto, que tem certo saber. A partir de todo ponto de vista, domina. Procede de outro extremo da Europa. É um angustiado que tem uma sabedoria. Como homens, Beckett e Ionesco estão no extremo um do outro. Samuel Beckett é o dono de si mesmo, se domina. Eugene Ionesco explode. São dois temperamentos diferentes. O fenômeno Beckett você o sente quando está diante dele. Beckett não se expõe, mas você sente que está diante de alguém. É um angustiado dono de si que se percebe no primeiro olhar. Não é balcânico. É um muito bonito ver um angustiado que é dono de si, é um fenômeno. Beckett está aqui há muito tempo, mas nunca foi tocado pela França, intelectualmente. Sempre foi um estrangeiro, mas está aqui há muito tempo. É um dos mais distintos não latinos".

"Beckett era notável, mas sua conversa não era interessante. Era sempre o mesmo, não se tornou francês. Um tipo curioso, não era instruído no sentido francês da palavra, mas tinha algo profundo".

"Beckett leu algo meu e nos conhecemos num teatro, depois ficamos amigos. Num determinado momento, me ajudou até mesmo financeiramente. Para mim é muito difícil definir Beckett. Todo mundo se engana a respeito dele, em especial os franceses. Diante dele, querem brilhar, fazer paradoxos deliciosos. Mas Beckett era alguém muito simples e nunca esperava isso. Para falar com ele, deveria ser direto e não presunçoso. Ele não tinha nada de parisiense, mas estava há vinte e cinco anos na França. Os franceses não o contaminaram, absolutamente, nem no bom sentido nem no ruim. Dava sempre impressão de ter caído da lua. Ele achava que tinha se afrancesado, mas não era nada assim. Era assombroso não se contaminar. Ele continuou sendo anglo-saxão e isso eu gostava muitíssimo. Ele não ia a coquetéis, sentia-se incômodo socialmente, não tinha prosa, como se diz. Gostava somente de conversar com outra pessoa e então tinha um encanto extraordinário. A mim me encantava.
Em Beckett eu adorava essa aparência de ter chegado na véspera a Paris."

Um comentário:

Henrique Hemidio disse...

Que sintonia, acabo de fazer uma alusão a Beckett no meu último post.
Abraço!