domingo, 17 de agosto de 2008

Folha Explica Caetano

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Caetano Veloso é, certamente, uma das mais "inexplicáveis" personalidades brasileiras. Não apenas por ser um artista polêmico e camaleônico, cuja força sempre esteve na capacidade de escapar às classificações e desautomatizar chaves convencionais de interpretação, mas também por se tratar de alguém que não cansou de se auto-explicar ao longo dos seus quarenta anos de vida artística (iniciada em 1965), a ponto de parecer esgotar tudo o que de novo se poderia dizer a seu respeito.

Ao mesmo tempo, continua a atrair para si a atenção de um público imenso --dentro e fora do país--, mantendo-se como um foco de controvérsias a exigir sempre novas explicações. Quer dizer: a "explicação", aqui, não é dispensável ou redundante. Na verdade, ao atacar a autonomia formal da canção, incluindo uma série de outros elementos no seu interior --encenação, ruídos, referências visuais, cultura de consumo--, o tropicalismo deu ao discurso conceitual um papel construtivo, transformando a música popular brasileira em um campo de cruzamentos onde as coisas estão todas postas em estado de explicação.

Pode-se dizer, portanto, que a partir daí a canção passa a fazer parte de uma polimorfa explicação da cultura. E ao fazê-lo, de forma sempre heterodoxa e dissonante, termina também por explicar o Brasil. Assim, não são poucas as explicações que, de um modo ou de outro, estão pressupostas neste pequeno livro.

Paralelamente, ao fazer de Caetano Veloso o título de um Folha Explica, será preciso lembrar que ele tem sido um dos artistas que mais discutiram não só com a crítica musical especializada, mas com a imprensa em geral --na qual a Folha de S.Paulo teve destaque, ao lado do Jornal do Brasil e da revista Veja. A postura de assumido --ou suposto-- cosmopolitismo adotada pelo caderno "Ilustrada" nos anos 80, no caso particular da Folha, levou-a a relativizar ou desqualificar freqüentemente valores defendidos e representados por artistas da música popular brasileira.

Caetano, acusando nessa posição aquilo que sente como desprezo pelo Brasil, da parte de uma certa inteligência paulistana ciosa de se distinguir e se desincompatibilizar das marcas paradoxais do país colonizado e periférico, apelidou-a ironicamente de "A Falha de S. Paulo".

Como se verá, o roteiro desse livro não segue uma cronologia linear. Antes, propõe um certo embaralhamento de tempos, que intenta dialogar com a prosa poética do artista, essencialmente elíptica e antinarrativa. O que não quer dizer que se tenha, aqui, descuidado de preocupações didáticas. Ao contrário, essa opção procura dar maior ênfase a questões essenciais que atravessam sua obra, visto que esta é marcada por inúmeros pontos de adensamento e ruptura em que o artista veio, ao longo do tempo, a reinventar-se diante de impasses e desafios renovados, embora nem sempre com pleno domínio dos seus desígnios.

Estrategicamente, este ensaio se inicia focalizando o último momento de adensamento nessa trajetória até agora: o show Circuladô (1992), em que, ao completar 50 anos de idade e 20 anos da sua volta do exílio em Londres, Caetano faz uma releitura de sua carreira situando-a em novas bases, como desdobramento vital de um desconforto apontado em Estrangeiro (1989), na passagem dos anos 80 para os 90, em que o artista tematizava o eclipsamento das utopias surgidas no ambiente libertário e contracultural dos anos 60.

Ao fazer essa revisão, Caetano recupera a experiência do exílio (1969 a 72) como um dado fundamental em sua obra. O que, ao mesmo tempo, ilustra a sua concepção de que o golpe militar de 64 não significou a corrupção de um Brasil puro, e sim uma expressão cruel mas verdadeira de sua "geléia geral", feita de forças antagônicas e contraditórias em que não se divisam separações esquemáticas entre o bem e o mal. Essa é a ponte que nos leva, voltando atrás no tempo, para o segundo capítulo, dedicado ao exílio e à superação da paródia tropicalista, apontando para um aprofundamento lírico afiado pela cultura nordestina em suas canções.

A volta do exílio prefigura uma situação muito representativa do papel cada vez mais pregnante da canção popular no Brasil, como uma resistência subterrânea à opressão do regime militar que tematiza o poder vital da música e do canto como superação mitopoética dos conflitos, abandonando a polarização que havia marcado o fim dos anos 60 entre engajamento político e experimentalismo estético, regionalismo folclórico e internacionalismo tecnológico. Esse assunto, que constitui o núcleo do livro, está dividido em dois capítulos: "Acordes Dissonantes Pelos Cinco Mil Alto-Falantes", que trata do tropicalismo (1967-68), e "Transa Qualquer Coisa Jóia, Bicho. Muito Cinema Transcendental", que aborda os anos 70.

Por fim, em "Lançar Mundos no Mundo" se discutem temas variados, como a relação de Caetano com a composição de canções e com as diversas cidades do mundo a partir de Santo Amaro da Purificação, sua cidade natal, situada no recôncavo baiano. Nesse capítulo final é debatida também a retomada do Brasil como questão em sua obra a partir de Velô (1984), no momento da abertura política do país com a campanha pelas "Diretas Já", em um percurso --agora sim cronológico-- que volta a encontrar o ponto inicial do livro (1989 a 92) e o ultrapassa, abrindo-se para uma breve reflexão acerca da sua produção nos últimos tempos.

Nesta, uma longa crise parece explicitar-se, deslocando o foco de inquietação da composição de canções para a vocação de intérprete em sentido amplo: intérprete-ensaísta do processo de "formação" brasileira, lido pelo prisma de sua singularidade cultural --que se consuma na redação do livro Verdade Tropical (1997)--, e cantor-leitor de um vasto repertório da música popular mundial a partir de uma dicção própria --na interpretação dos cancioneiros hispano e anglo-americano em Fina Estampa (1994) e A Foreign Sound (2004), além do cruzamento entre canções brasileiras do período pré-bossa nova e o universo das canções italianas tendo como inspiração os filmes de Fellini, feito em Omaggio a Federico e Giulietta (1999).

Afirmando-se, a partir daí, como um artista de enorme trânsito internacional, em diálogo produtivo com figuras como a dançarina e coreógrafa alemã Pina Bausch --que o convidou para tocar na festividade de 25 anos da Companhia Tanztheater Wuppertal (1998)--, e o cineasta espanhol Pedro Almodóvar --que inclui, em "Fale Com Ela" (2002), uma cena em que Caetano canta "Cucurrucucú Paloma" no set. Isto é: consolidando-se como intérprete do Brasil e divulgador internacional privilegiado da experiência de sua música popular, numa atitude que aponta para a reversão artística dos complexos de subdesenvolvimento herdados da colonização.

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"Folha Explica Caetano Veloso"
Autor: Guilherme Wisnik
Editora: Publifolha
Páginas: 200
Quanto: R$ 20,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo televendas 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

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