quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Dois textos de Monteiro Lobato

Leia "As quatro asneiras de Brecheret" e "Fantasia", de Monteiro Lobato

da Folha Online

Monteiro Lobato (José Bento Monteiro Lobato, 1882-1948) foi um dos primeiros nomes da literatura brasileira a escrever para a "Folha da Noite", um dos jornais que deu origem à Folha de S.Paulo (em 1960, os jornais "Folha da Manhã", "Folha da Tarde" e "Folha da Noite" foram reunidos em um só jornal --a Folha). O escritor colaborou por mais de duas décadas com os jornais do grupo.

Conhecido por suas histórias infantis, como as do Sítio do Pica-Pau Amarelo, Monteiro Lobato também escrevia textos para o público adultos. Dois destes textos --"As quatro asneiras de Brecheret", publicado em 1921, no qual o autor faz uma crítica bem-humorada ao escultor Victor Brecheret, e "Fantasia", publicado em 1948, pouco após a morte de Lobato, com elogios a Walt Disney-- podem ser lidos abaixo.

Os textos foram republicados recentemente no livro "Figuras do Brasil - 80 Autores em 80 Anos de Folha", da Publifolha.

Os dois textos podem ser lidos abaixo, na íntegra.

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AS QUATRO ASNEIRAS DE BRECHERET

Brecheret1 é um escultor que apesar de moço já tem na vida uma série de asneiras colossais.

Asneira básica, fundamental, mãe de todas as outras: nascer no Brasil. O Brasil não é terra onde um artista nasça. Deve nascer aqui quem inda, no ovo, já sente comichões condais no cóccix, e nas unhas esse prurido ratoneiro que os espertíssimos Ximenes maravilhosamente compreendem e exploram.

Segunda asneira: voltar ao Brasil convencido de que pelo simples prestígio do seu talento todas as portas se abririam. A dura realidade fez-lhe ver o contrário: as portas só se abrem com gazuas e gorjetas. O talento único que por cá tem cotação é o do negocista sem escrúpulos, que suborna por meios diretos e indiretos, verbi gratia, o grilo Ximenes.

Reprodução
Livro traz textos de 80 autores publivados em 80 Anos de Folha
Livro traz textos de 80 autores publicados em 80 Anos de Folha

Terceira asneira: acreditar na seriedade de concursos abertos no Brasil. Em matéria de arte procede-se no Brasil da mesma forma que em matéria de política, e tudo depende da cavação e da gorjeta, motivo pelo qual a vitória, vira e mexe, cai sempre nas unhas dos comendadores.

Três asneiras deste naipe já constituem um acervo de vulto, suficiente para destruir a vida de um artista. Pois o nosso escultor, não contente com a volumosa trindade, ainda cometeu outras menores, como por exemplo a de não expor a sua Eva logo ao chegar a São Paulo, fazendo-o agora que se retira de novo para o velho mundo.

Porque essa magnífica escultura devia até precedê-lo aqui, como a credencial indiscutida e indiscutível do seu grande valor como artista do mármore. Viria dar-lhe, na opinião pública, um fortíssimo pedestal ao seu nome e impô-lo de maneira irrevogável.

A mais séria obra de escultura que até hoje apareceu em São Paulo foi também uma Eva, a de Rodin2. Dá-lhe essa classificação, primeiro o ser de fato uma obra-prima, segundo o ser assinada pelo grande Rodin.

Pois bem: diante da Eva de Brecheret, ora exposta na casa Byington, perde a de Rodin o primado e passa a ser ombreada por uma rival, igualmente obra-prima, e só inferiorizada pelo fato de a assinar um escultor brasileiro de nome ainda não trombeteado pelas lupinas da fama.

Todas as qualidades que exalçam um mármore à categoria de obra-prima reúnem-se nela. Representa uma mulher, e tecnicamente desafia o anatomista a lhe apontar o menor deslize de fatura. O jogo dos músculos, num equilíbrio perfeito, atinge a um desses momentos de verdade anatômica que paralisam nos olhos a visão crítica, para só deixar em campo, estática, a visão admirativa.

Mas a uma escultura destas não basta apenas a fidelidade ao natural. Faz-se mister ainda o conjunto de qualidades de expressão que criam a alma da pedra e por onde se afere o verdadeiro mérito do artista: se é um simples Ximenes hábil ou um criador de algo nuevo. A Eva de Brecheret possui esta alma, este algo, indizível, indefinível, imponderável, inclassificável, possui esta força misteriosa que no observador se traduz pela sensação augusta da obra-prima. Inutilmente os críticos de arte amontoam palavras sobre palavras para definir este "quê" perturbador das verdadeiras obras de arte. Fugidio e inapreensível por essência, é dessas coisas que a alma sente mas a palavra não diz.

O comentário único admissível ante tais obras é um silêncio devoto, um silêncio religioso que traduza a confissão tácita de que estamos em face de alguma coisa que transcende do nosso círculo de percepções habituais. Esse estado de alma reproduz-se sempre (em quem tem alma, está claro) pela ação da música, quando é Beethoven que nos penetra de sons o íntimo da substância, pela ação da pintura, quando a faz a mão do gênio, pela ação do verso, quando o cantam os sumos poetas, pela ação da arquitetura, quando uma catedral se nos defronta, e pela ação da escultura, quando emprestou vida à pedra um desses raros plasmadores da vida marmórea. Pois bem: se a Eva de Brecheret transfunde-nos tal estado de alma, não é preciso dizer mais. Isso sagra-o. Isso consagra-o. E isso cobre de vergonha a nossa petulante Cartago, a este São Paulo que repudia de seu seio um artista destes, exila-o, esfaima-o para em seguida meter no bolso dum grileiro de gênio centenas de contos em troca de um presépio de pedra e bronze, cheio de leões, panteras, bugres, cavalos de Tróia, girafas, jacarés etc., monumento falsíssimo uma vez que esqueceu os camelos pagantes, e, como coroamento de tudo, na cúspide, o pé-de-cabra onipotente, onipresente, onisciente, onicavante.

Brecheret está intimado a fechar a série das suas formidáveis asneiras. Pelo amor de Deus não cometa a quinta: que seria crer na regeneração disto e regressar mais tarde com sonhos na cabeça em vez de cartas de recomendação no bolso e ardor estético n'alma em vez dos dez mandamentos da Arte de Cavar bem decoradinhos. É preciso não esquecer nunca que, apesar da casaca de importação, o aimoré que comia gente inda vige e viça sob mil disfarces e hoje, mais faminto do que nunca, se fez aramófago...

Folha da Noite, 16/4/1921

1 Depois de uma temporada na França, o escultor Vítor Brecheret (1894-1955) voltou ao Brasil, logo após a Primeira Guerra Mundial, participando da Semana de Arte Moderna de 1922. Na Bienal de São Paulo de 1951, ganharia o prêmio de melhor escultor brasileiro.
2 O escultor francês Auguste Rodin (1840-1917) é o criador de O Pensador e O Beijo, entre mais de 200 obras que estão na raiz da escultura moderna.

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FANTASIA3

Fantasia deixou-me estarrecido4. É a expressão. Estarrecido. E embaraçado para definir. Tudo tão novo, tudo tão inédito, que o vocabulário crítico usual mostra-se impotente. Disney é um tipo novo de gênio e sua arte é uma arte total e absolutamente nova, jamais prevista nem pelas mais delirantes imaginações. Até o aparecimento de Disney, o cinema não passava duma conjugação do teatro com a fotografia. Era uma representação teatral fotografada em todos os seus movimentos, cores e sons. Disney criou a grande coisa nova; a conjugação da fotografia com a imaginação.

O desenho genial de Disney permite que todas as criações da imaginação possam ser fotografadas e projetadas com a riqueza dos sonhos. Uma arte, pois, absolutamente nova e jamais prevista.

Tudo quanto é absolutamente novo desnorteia a rotina do nosso cérebro. Ficamos sem palavras para julgar. O vocabulário humano é um conjunto de convenções que refletem experiências muito repetidas. Quando uma experiência sensorial totalmente nova nos defronta, o velho vocabulário existente mostra-se necessariamente inadequado.

Diante da dança dos cogumelos chineses, das manobras da fada do orvalho, da tradução em desenho do pensamento musical dum Stravinski ou dum Beethoven, da prodigiosa sátira à "Dança das Horas" de Ponchielli, do jogo de dois extremos, como a bolha e o elefante, da disneyzação da família de Pégaso e do clã dos centauros, a atitude do espectador torna-se cômica. Temos que abrir a boca e conservar-nos mudos. Tudo quanto tentarmos dizer com as convencionais e velhas palavras da admiração torna-se grotesco.

Um meu vizinho de poltrona tentou comentar o anjinho que cerrou as cortinas quando o casal de centauros amorosos se recolheu para o amor - o anjinho de costas cujo traseirinho nu foi virando coração - e tive de pedir-lhe silêncio.

Não fale.

Falar as velhas palavras diante de tal mimo de criação artística é quebrar grosseiramente algo prodigiosamente lindo, é furar com ponta de
prego enferrujado uma irisada bolha de sabão.

Não fale. Não comente. Não conspurque. Limite-se a extasiar-se. Diante de "disnéas" como o do elefante atrapalhado com a bolha, do anjinho que transforma nádegas em coração, da peixinha que se mantém de rosto impassível de tão consciente da prodigiosa beleza da sua dança aquática, do enlace de caudas quando a mimosa centaura se aninha no peito do seu centauro amoroso, falar é profanar.

Walt Disney é a suprema compensação dos horrores que a guerra está trazendo para a humanidade. Há a guerra, sim. Há o bombardeio aéreo às cegas. Há o estraçoamento dos inocentes. Há o inferno. Mas a humanidade salva-se produzindo neste momento trágico a altíssima compensação dum Disney, o Grande Criador.

Ah, se fosse possível um novo fiat! Recriar o mundo! Com o material que a natureza nos fornece produzir um mundo novo, formas novas de vida - e se fosse Walt Disney o encarregado da transmutação! Que suprema, que prodigiosamente bela uma nova Criação Cósmica assinada pela mais alta expressão do gênio humano - Walt Disney!

Inania verba... Que impotência a nossa ao tentar dizer de Disney com esta coisa grosseira que é a palavra escrita!

Nós, gente de hoje, somos trogloditas da Pedra Lascada diante dessa criatura que nos entremostra maravilhas dum ainda remoto futuro.

Disney, Disney, os trogloditas te saúdam.

Folha da Noite, 12/7/1948

3 Publicado pouco após a morte do autor, esse texto vinha precedido de uma nota, esclarecendo que "deve ter sido redigido em setembro de 1941", supostamente para o número 5 da revista Clima, dedicado "ao estudo e à crítica do grande filme de Walt Disney", com trabalhos de Oswald de Andrade e Sergio Milliet, entre outros. Lobato não chegou a entregar seu artigo para o editor da revista, Lourival Gomes Machado. Sua publicação deve-se a Edgar Cavalheiro, "herdeiro de todo o arquivo de Lobato" e seu futuro biógrafo.
4 Fantasia, de 1940, foi o terceiro desenho animado de longa-metragem de Walt Disney (1901-66), depois de Branca de Neve e os Sete Anões (1937) e Pinóquio (1939). Na seqüência viriam Dumbo (1941) e Bambi (1942).


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