domingo, 17 de agosto de 2008

Bahia (texto do Caetano Veloso)


BAHIA
17/08/2008 1:43 am

Caymmi completou sua vida luminosa. Saí do ensaio das músicas de Jobim com Roberto Carlos e fui à Câmara Municipal ver a cara dele pela última vez. Beijei Nana. Rimos. Não pode haver um jingle turístico mais perfeito do que “Você já foi à Bahia?”. E nenhum seria assim puro de toda ansiedade comercial. É que não é para “turistas”. Não tem desprezo nem raiva dos turistas, mas é para quem quer que seja uma “nêga” que mereça ser chamada assim (claro que isso pode ser mulher ou homem: estou falando de algo essencial numa alma humana). Caymmi trouxe a coloquialidade mais natural para os versos e as notas das canções. A melodia inicial de “Você já foi à Bahia?” tem as interrogações no lugar certo, a vírgula no lugar certo, o ponto final no lugar certo. “Você já foi à Bahia, nêga, não? - então vá.” vem em frase melódica que canta a nossa fala natural. E segue assim, na entonação de “Quem vai ao Bonfim, minha nêga”, onde a vírgula entre “Bonfim” e “minha nêga” cai certinho, e esse “minha nêga” vem em notas mais baixas (e ainda descendentes), exatamente como quando alguém (sobretudo um baiano) fala. E a gradação virgulada de “muita sorte teve, muita sorte tem, muita sorte terá”, seguida da volta da pergunta inicial, agora com o ponto final mais definitivo, incidindo sobre a fundamental! E - depois do refrão “então vá” repetir-se ritmicamente seguindo a série “lá tem caruru”, “vatapá”, “mungunzá” - abre-se aquele largo das “sacadas dos sobrados da velha São Salvador…” que eu repeti quase todo (menos o último verso) em “Terra”. Há aí bandeira de que se trata de obra de extração popular, quase iletrada, nas inadeqüações prosódicas de “velha” (que, por força da melodia torna-se - ou tornar-se-ia - “velhá”) e de “tempo” (que vira “tempu” - ou, se você for gaúcho ou paranaense, “tempô”)? Há. É feio? Não. Fica pior quando se tenta “corrigir”? Nem assim. Não fica menos rica essa canção por alguém mudar um pouco a melodia para forçar uma adeqüação prosódica. Nem por alguém entregar-se à deformação popular dos paroxítonos em oxítonos. “Você já foi à Bahia?” é uma jóia perfeita. E, além de ser uma banalidade, é um retrato passadista da cidade. Mas será? Na verdade é um retrato atemporal, um retrato essencial, o retrato de algo que dura mais do que as mudanças que surgem e morrem em pouco tempo. Esse mundo (de aparência passadista mas referido a durações mais profundas - e de extrema naturalidade de dicção) reencontra-se nos sambas todos que Caymmi fez e cantou: “Lá vem a baiana”, “Requebre que eu dou um doce”, “A vizinha do lado”, “Vatapá”, “Vestido de bolero”, “Rosa morena”, tantos. Em todos - e muito claramente na parte repetitiva de “Você já foi à Bahia?” - a exposião consciente do parentesco entre o Brasil e Cuba, a Bahia e Cuba. Jorge Luis Borges, num texto em que lista a contribuição dos negros às culturas americanas - fato que ele credita ao padre Bartolomé de las Casas, por este ter sugerido, por pena dos índios, a importação de escravos africanos - , deplora a existência da “insuportável rumba ‘El Manicero‘”. Nesse texto, típica mas chocantemente, Borges nem sequer alude ao Brasil (imagine alguém escrever um texto sobre a contribuição dos negros na construção das nações americanas e nem citar o Brasil, o maior e mais miscigenado de todos os países da América, o que abriga a maior população negra fora do continente africano!). E justamente o samba que fez Caymmi famoso no Brasil - e o Brasil famoso no mundo, através de Carmen Miranda - é, em larga medida, uma variação sobre “El Manicero”: “O que é que a baiana tem?”. Eu credito à força da língua espanhola a visão desproporcionada de Borges. E Carmen adaptou-se a muitas submissões da música brasileira aos estilos cubanos, mais conhecidos dos norte-americanos (aliás, Exequiela, são poucos no Brasil que, poucas vezes, usam o termo “estadunidense”, e eu entendo: é feia essa palavra: o sumiço do plural de “estados” me causa desconforto, para só dizer o mínimo; e na verdade “americano” quer, no mais das vezes, dizer “relativo aos Estados Unidos da América”, que, indo mais longe do que no caso da África do Sul, é o único país cujos colonizadores não sentiram necessidade de nomear, tomando o nome do continente para si, como se dissessem: “América é onde chegamos, o resto é nada” - e é a partir disso que se comporta a língua ao redor desse conceito; acho natural e saudável que tentemos reagir a isso, mas “estadunidense” não é uma boa solução - nem “estados unidos” é propriamente um nome: o nome é América, “estados unidos” equivale a “república federativa” ou a qualquer outra designação genérica - e, de fato, o México é Estados Unidos do México e o Brasil foi, até pouco tempo, Estados Unidos do Brasil; quando aceitamos o equívoco termo “americano” como significando “dos Estados Unidos”, ou mesmo “norte-americano” (já que este se aplicaria igualmente ao México e ao Canadá), estamos apenas usando uma palavra pelo que ela mais freqüentemente significa: resistirmos a isso não mostra mais nossas forças do que nossas fraquezas). Mas “O que é que a baiana tem?” não ecoa submissão nem humilhação diante da América hispânica: transpira sabedoria no generoso reconhecimento de parentesco. Caymmi surge aqui muito mais alto do que Borges. Mas essa minha volta rebuscada e petulante não deve nos afastar de considerações menos discutíveis. Por exemplo: a combinação reveladora de sutilezas impressionistas com rudeza, tal como se ouve nas “canções praieiras”. A previsão da bossa nova no casamento do coloquialismo natural com a sofisticação composicional, como perceptível nos sambas-canções dos anos 40 e 50. A mescla de canto operístico com intimidade. A contribuição para a criação do autor-cantor (que em língua espanhola e italiana se chama de “cantautor”): Caymmi é o único que conheço que foi, ao mesmo tempo, o Gershwin e o Bing Crosby (ou Al Johlson), uma prefiguração do que seríamos os autores-cantores dos anos 60 em diante, Gilberto Gil, Bob Dylan, João Bosco… Há o caso dos bluesmen, como Robert Johnson, ou dos trovadores franceses, como George Brassens. Mas, sem entrar no mérito da qualidade artística intrínseca de nenhum deles, Caymmi foi algo que eles não foram: um autor como Cole Porter ou Ary Barroso, abrangente, variegado. E foi o que nem Barroso nem Porter puderam ser: o melhor intérprete de suas próprias canções, sobretudo quando sozinho com seu violão. E aquela voz de Caymmi, aquela voz de caverna (que seus três filhos herdaram), voz de caverna marítima, como aquela que, ecoando o ronco das ondas, soa como um rugido de leão, na costa da ilha de Fernando de Noronha, Gruta Azul. A voz de Caymmi é uma Gruta Azul com cantos napolitanos de barqueiros dentro, barqueiros que pensam que enganam os turistas. Caymmi era uma rocha e um anjo. Demasiado material, demasiado espiritual. Caymmi é um núcleo do Brasil. Caymmi será o Mundo. Quem disse melhor sobre suas canções foi Arnaldo Antunes: Não parece coisa feita por gente.

O prefeito de Salvador cometeu um crime ao substituir a calçada portuguesa do Porto da Barra por cimento e granito polido. Aliás, está cometendo. Obra em preogresso. Estamos em posição de apanhá-lo em flagrante e impedir o assassinato. O estilo cafona deve ser semelhante ao do que foi feito na Praça da Sé pelo governo municipal anterior. E o prefeito então era Imabssahy, que é, até segunda ordem, meu candidato para as eleições que vêm aí. Mas a Praça da Sé era, havia muito, um lugar destruído. Talvez tivesse sido desmoralizada quando se derrubou a Sé para facilitar o trânsito dos bondes, bem antes de eu nascer. O que ficou tinha se transformado num terminal de linhas de ônibus muito feio. A arrumação luzidia que Imbassahy admitiu que lhe dessem é vulgar e perua, mas sobressai a impressão de que alguém limpou a sala. Foi uma madame tola e inculta, mas cuidou. No Porto da Barra, pode ser que qualquer trato dê a impressão de ser melhor do que nada a algum comerciante austríaco que tenha um barzinho lá. Mas o Porto da Barra é um ponto nobre do urbanismo de Salvador. Precisa ser cuidado. Jamais desfigurado. A calçada portuguesa é tesouro nosso, de povos que falam português: são parte de nossa estrutura anímica. Em São Luís se mostrou que a recuperação de calçamentos com pedras portuguesas (que não precisam ser portuguesas, como o desvisado prefeito chegou a julgar) pode ser feito com firmeza e precisão. No Rossio, em Lisboa, também. Sei que em Copacabana (não na praia, claro, porque aí até a Dysney ia protestar) mas na Nossa Senhora) fez-se algo parecido. Resolveram atribuir ao tipo de calçamento os desconfortos que advêm de descuido e maus tratos. Rua com chão que parece shopping center também esburaca se não se não há cuidado. O Porto da Barra é uma enseada pequena e parece um anfiteatro perfeito para se ver o pôr do sol, ladeada pelos fortes de Santa Maria e de São Diogo. A balaustrada e as pedras portuguesas (ensombradas por árvores) complementam o equlíbrio estético de um lugar que é a praia do povo da Bahia. Um luxo cool e popular. Pois o prefeito está retirando as pedras portuguesas e já derrubou oito árvores! No dia em que morreu Dorival Caymmi, protesto (e conclamo baianos natos e opcionais a protestarem) contra essa ação estúpida. Vamos repor as pedras portuguesas.

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