quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Alguns Textos de Francis

Por curiosidade, alguns textos de Paulo Francis

Paulo Francis - o contundente crítico cultural

http://www.infolink.com.br/~paulofrancis/pf4h90.htm

Letras em 1990

* Versão 01- jul99 *

(FSP, 11/01/90) (*) Proust Marcel - Acho hoje que o buraco de Proust é mais embaixo do que aquele esgotamento de tudo que é possível sentir, de todas as maneiras possíveis, tornando um tanto supérfluos outros romances ou obras quaisquer de ficção. Há um imenso prazer na vida em Proust, apesar de todos os desapontamentos, frustrações e "filosofações".

(FSP, 13/01/90) (*) Bettelheim, Bruno - Há muitos ensaios de Bruno Bettelheim sobre o seu trabalho supremo, a terapia de crianças, a que dedicou sua vida (e nos deu obras-primas como O uso dos encantamentos), particularmente de crianças autistas. Nunca entendi como ele deixou de ganhar o Prêmio Nobel, seja como cientista ou littérateur, porque é magnífico nas duas coisas.

(FSP, 18/01/90) - Li num dos diários de Edmund Wilson, não sei qual, ele está sendo publicado nos anos 50, que um dia, olhando-se no espelho num restaurante, Wilson se viu como os outros o viam, maçudo, careca e colérico. Wilson achava o ser humano muito feio. Difícil discordar. Seus dedos lhe lembravam criaturas da pré-história. E, claro, "Fellini" está sempre presente quando olhamos uma rua ou lugar onde se concentra muita gente: uma galeria de grotescos. É perfeitamente razoável que adoremos como a Baal a criatura bonita que é, por alguns poucos anos, a exceção da regra.

(FSP, 20/01/90) (*) Vidal, Gore - Os ensaios de Gore Vidal nos anos 60 eram de uma ousadia e frescor de quem não tem nada a perder, que persistem hoje, mas acrescidos de algo que parece voluntarioso e não espontâneo, uma obrigação de repetir certas posições para que, tenho certeza, Vidal está se lixando. Vidal é um romancista de humor. Myra Breckinridge e Duluth (menos) são bons. Mas ele insiste em livros gigantescos tipo Hollywood, recém-lançado, para o qual, francamente, não tenho saquitel. Não estou rejeitando todos os livros históricos de Vidal. Li atentamente com proveito e prazer Lincoln, por exemplo, mas eu preferia o velho cínico de Myra e ensaios.

(FSP, 20/01/90) (*) Maugham, Somerset - Dostoiévski me fundiu a cuca, Aldous Huxley me fez ver o que eu não poderia deixar de ser no futuro, mas Maugham, o contador de histórias, nos levava a um paraíso sem qualquer obrigação intelectual, um paraíso discreto de Schadenfreude, noto hoje, em que gozamos de leve a caveira dos outros, e em que um certo romantismo infantil, ou que só se tem em criança, emerge contra todo o pretenso cinismo do autor. O mais interessante é a aventura de viver como Strickland, de The moon and sixpence, e dos contos dos mares do Sul. E há mais, por exemplo, o chique de O fio da navalha, que devorei extasiado. Talvez Maugham seja o que um de seus admiradores confessos, que nos ficou devendo um ensaio sobre ele, George Orwell, chamava de "good bad books", ou seja, livros que não obedecem à nossa ortodoxia do bom e do modernista e que, no entanto, nos agradam subliminarmente.

(FSP, 20/01/90) (*) Benjamin, Walter - Benjamin e um ídolo dos intelectuais de esquerda que não conseguem se reconciliar com o stalinismo e mesmo com as formas mais intensas de "piroquetagem" em voga no Brasil. Confesso que o li sobre Paris, a capital do século XIX, já muito fã, porque tinha lido uma paráfrase de Proust, uma resenha de Proust escrita à la Proust, que me derrubou de emoção, mas achei Paris etc. uma confusão dos diabos pontilhada por uma ou outra observação brilhante. Confesso que não consegui ler suas Teses sobre a filosofia da história, mas li seu diário de Moscou, que é chato, chato.

(FSP, 27/01/90) (*) Hemingway, Ernest - Hemingway já foi modíssima. Aquela vida aventurosa, caçando, vendo touradas, escrevendo uma prosa curta e estóica, onde os ee (ands) se sucediam, criando um ritmo único que praticamente não há escritor contemporâneo que não tenha sido influenciado. In our time, livro de contos, é uma obra-prima de realismo. Edmund Wilson reconhece em Hemingway o sucessor moderno de Mark Twain, o Twain de Huckleberry Finn, em que as palavras parecem pescadas no frescor de um riacho... Um adolescente e a natureza. Ninguém escreveu sobre a relação homem-natureza como Hemingway. Li encantado The sun also rises. Quando fui relê-lo, achei-o intoleravelmente maneiroso. Hemingway nunca foi capaz de escrever uma mulher de verdade, defeito que partilha com quase todos os escritores deste país. Foi a virilidade, excessiva e em parte postiça, de Hemingway que o tornou impopular com os formadores de opinião. Dois lobbies fortes se levantaram contra ele: o homossexual e o feminista. O primeiro odiava a figura do machão, que admirava o senso de autoridade do toureiro, por exemplo (há um grande conto chamado "The undefeated"), e que achava a guerra e a caça ambições supremas do homem. A idéia é intolerável a professores de literatura que tomam sherry e seguram os bagos dos alunos mais bonitos. Hemingway também exagera na submissão das mulheres, em livros como A farewell to arms e Por quem os sinos dobram, e ganhou a inamistosidade ruidosa dos "sapatos". O último livro de Hemingway, The old man and the sea, é uma versão inflacionada, estilisticamente, de "The undefeated". Um momento lá, Hemingway perdeu a cabeça. Seu livro póstumo, de memórias, A moveable feast, é escrito no velho estilo, lacônico-expressivo, e é interessante pelo que nos diz de Paris e pela sua generosidade com malditos como Ezra Pound, mas é de uma crueldade paranóica.

(FSP, 01/02/90) - Inglaterra - Polêmicas - A Viking editora está para decidir se publica "Os Versos Satânicos" em "paperback". Diz o "Observer" inglês que não haverá "paperback" enquanto "vidas estiverem em risco". Está custando quase quatro milhões de dólares para garantir a segurança dos empregados da Viking, em Londres, que é associada à Penguin inglesa. E Salman Rushdie já foi trocado 50 vezes de moradia pelo "Special Branch", o braço político da Scotland Yard, que costuma espionar ilegalmente subversivos como Rushdie, mas que, agora, está zelando por ele, uma das muitas ironias do episódio. Conheço um cara da Viking aqui. Não quer nem falar comigo ao telefone. A mulher dele me disse que eu deveria compreender que se saísse o nome do marido, mesmo que brasileiro, a vida do distinto estaria em risco. A "fatwa", a sentença de morte que Khomeini passou abrange quem tenha qualquer participação no livro. O livro é chato (...)

(FSP, 01/02/90) - URSS - Pasternak - Dizem que é o maior poeta do século, Boris Pasternak, de que se está comemorando o centenário este ano. Três biografias, uma de Christopher Barnes, da Cambridge, mas volume 1, hum... de que li uns versos horrendamente traduzidos pelo próprio Barnes. Há também as memórias de um filho de Pasternak, "Pasternak, The Tragic Years", que nem olhei, mas de que li resenhas dizendo que não "Freud" nem sai de cima e, finalmente, "Boris Pasternak, a Biography", de Peter Levi, da Hutchinson inglesa. Esse ex-monge benditino, Levi, que se se casou com a última mulher de Cyril Connolly, é o poeta-em-residência de Oxford. Sua poesia não é nada. Mas ele é agradável, às vezes, como ensaísta. Lê muito bem grego e latim e, pelo visto, russo. Mas não responde a duas perguntas que me parecem decisivas sobre Pasternak. Quando o poeta Osip Mandelstam foi preso, Stalin telefonou a Pasternak. Disse que Mandestam não seria executado. Foi. Mas foi o que disse a Pasternak, o tirano. Disse também que tudo estava resolvido... E depois perguntou a Pasternak se Mandelstam era ou não um gênio. Pasternak respondeu "que essa não era a questão" e Stalin perguntou qual era a questão". Pasternak não respondeu e disse que queria um encontro com Stalin. Esse perguntou para quê. Pasternak respondeu que era para "discutir a vida e a morte". Stalin desligou. A grande pergunta é se Pasternak concordasse em que Mandelstam era um gênio Stalin o teria poupado como "tesouro nacional". Como poupou Pasternak.

Quando saiu "Dr. Jivago" tive de pelejar para defender o livro contra um editor comunista, que tentou me sabotar de todas as maneiras. Mas meu artigo saiu. Nunca mudei de opinião sobre o direito de Pasternak publicar, mas achei o livro chato e careta. Leio agora que era uma posição de esquerda nos anos 50 criticar o livro. Hum... Tenho uma declaração de Stravinski, que leu o original russo e disse que era uma vergonha que Pasternak escrevesse um romance daqueles na era de James Joyce.

(FSP, 03/02/90) - Rio de Janeiro - Inglaterra - O livro de Joel e Geneton - Passei algumas horas agradáveis e instrutivas lendo o livro de Joel Siqueira e Geneton Moraes Neto, da Record, "Hitler/Stalin, o Pacto Maldito". Hum... Esse título. E hum... hum... a capa. Mas deixa para lá.

Gostei especialmente da passagem "Os domingos eram longos e tristes", das páginas 384 a 453, que nos dão Joel jovem, pobre, provinciano, no Rio, abrindo caminho junto à inteligentsia, em "D. Casmurro", "Diretrizes", essa entrou para o folclore jornalístico, e o suplemento literário do "Meio-Dia", feito por comunistas e "sympas", como Joel, durante o pacto de não-agressão entre Hitler e Stalin, de 23 de agosto de 1939 a 21 de junho de 1941, quando a Alemanha atacou a URSS.

Os dois autores fazem um interessante resumo jornalístico do que levou ao pacto nas primeiras 384 páginas. Quem não conhece o assunto e quer saber história poderia escolher jornais da época, disponíveis em inglês e francês. Mas alguns reparos. Esculhambam muito "Frente Popular", na França, cujo primeiro-ministro foi Leon Blum, porque não teve força para ajudar os republicanos na Guerra Civil Espanhola, o que é verdade. Mas o governo durou menos de um ano e nesse curto espaço de tempo (frase que Getúlio Vargas usou uma vez para seus 15 anos de governo) Blum fez passar duas peças de legislação que foram a carta de alforria dos trabalhadores, na época, e suas maiores conquistas até o governo De Gaulle, pós-1958. Isto é, Blum criou a semana de cinco dias, de 40 horas, oito horas por dia, com folgas. Hoje raro é o francês que não viaja pelo próprio país ou ao exterior com suas férias pagas, e ninguém jamais ousou contestá-las. Mas foi Blum, um líder injustiçado, que as criou. (...)

(FSP, 03/02/90) - Rio de Janeiro - EUA - Os comunistas e a guerra - Joel acha que foi uma patifaria (sic) gente como ele participar do tal suplemento do "Meio-Dia", que durou poucos números, e que Jorge Amado dirigia. Ingenuidade seria a palavra certa, sem falar dos furores nacionalistas de pessoas como Joel, até hoje voltados contra os EUA, já em vigor na época. Quanto aos comunistas, alguns dos quais depuseram contando seu sofrimento pessoal com o Pacto nesse livro, não há moral para eles, exceto o que a URSS, pátria do proletariado, quer. A tal proibição de fações no PC, uma idéia sinistra de Lênin, em 1921, foi levado a extremos por Stalin, e só interessava aos comunistas as ordens de Moscou. Comeriam cocô, como São Francisco de Assis, se Stalin ordenasse. Claro, muitos eram homens inteligentes e deploraram o Pacto, em particular. Mas, como diz E.J.Hobsbawm, um velho comunista, até hoje, e brilhante historiador, foi preciso coragem para apoiar o Pacto e ele se orgulha de ter seguido a disciplina partidária, mesmo discordando. (...) Mas o livro de Joel e Geneton é para isso mesmo, discutir. A documentação, com depoimentos de Sartre a Jorge Amado, é interessantíssima, e enquanto Joel Silveira, um dos jornalistas mais admirados do país, não escreve suas memórias, é um bom substituto.

(FSP, 04/02/90) - Nova York - Norman Mailer, 66, está escrevendo um livro, "O Fantasma da Puta", que, diz ele, estará pronto. Ai (bocejo), ai (bocejo), mal posso esperar. Enquanto isso, se deixa entrevistar por mulheres que lhe caem no goto. Em nenhuma publicação de primeiro time. Será que as publicações de primeiro time não o querem mais? Seja como for, é a segunda vez que comento para a Folha d’ uma entrevista de Mailer, com mulher, para revista desconhecida, no caso "M", de um costureiro. Assunto: sexo. Diz Mailer que se fosse jovem hoje não treparia, que por um pouco de prazer pode se pegar uma infecção fatal, porque tua companheira pode ter dado para um bissexual. E por um pouco de ego se pode ser chamado de machista e chauvinista. Fica a suspeita de que Norman já não possa get it up, hastear a bandeira. As uvas do vizinho são sempre verdes.

(FSP, 04/02/90) - Nova York - Tom Wolfe dá o tom - Tom Wolfe escreveu um artigo chamado "A besta de um bilhão de pés", ou sejam cada pé, leio, tem 33 centímentros, é uma puta besta. É o romance. Ele diz que os escritores abandonaram o realismo entregando-se a experimentos de linguagem que tornam seus escritos ilegíves e que o mérito de "A Fogueira das Vaidades", de Tom Wolfe, que vendeu mais que xuxu na feira e foi universalmente elogiado pelos críticos é que restabelece a vida como ela é, na frase de Nelson Rodrigues.

Críticos e escritores ficaram piçudos com Wolfe, que, apesar de afabilíssimo em pessoa, é detestado como direitista e filisteu nos círculos da moda intelectual de Nova York, que, naturalmente, pendem à esquerda e têm a sensibilidade do vírus da Aids, que, fui informado, morre até de cuspe, de tão fraco, mas o problema é pilhá-lo, porque é o vírus mais mutante que se conhece. (...)

Sem locupletar os países baixos do leitor, vou resumir esta polêmica aqui da maneira mais simples. Primeiro, é fácil admitir que Wolfe é um filisteu. E que não sabe do que está falando. Chama por exemplo Lionel Trilling e George Steiner, dois críticos eminentes, de "late marxistas". Nem Trilling, morto, ou Steiner, revelam a menor simpatia pelo marxismo. Estão cônscios do marxismo, no que escrevem ou escreveram, o que Wolfe não está, e é isso, entre outras coisas, que faz dele um filisteu.

E mais: "Ninguém se comove com o destino dos heróis de Homero, Sófocles, Molière e Racine. Cortei alguns nomes desconhecidos no Brasil. Mas eu e milhões de pessoas nos comovemos às lágrimas desvairadas com alguns destinos destes heróis, menos de Molière, claro, porque é um autor de comédias.

Wolfe ainda picha aquela "invenção" francesa, o romance psicológico, que não é francês, é inglês, e que exclui livros como "Crime e Castigo", de Dostoiévski, "A Morte de Ivan Ilych", de Tolstoi. Exclui Proust...

Tem remédio um cara desses? Tem. Ele escreveu um romance sobre Nova York, um dos assuntos mais interessantes do mundo, idéia que nunca ocorreu a Norman Mailer, Philip Roth, John Updike etc, os rivais de Wolfe. O que ele chama de "realismo" não o é, como vários autores de cartas contra ele demonstram sem a menor dificuldade. O que Wolfe chama de "realismo" é a vida de gente rica, famosa e bonita, e a vida dos miseráveis que querem subverter esta vida do bem bom, certamente o tema mais fascinante do nosso tempo. Lula é isto... O romance médio americano, se de homem, é sobre um professor universitário que não sabe se é homossexual ou não, um burguês ridículo, ou história em quadrinhos (Mailer). O de mulher é sobre mulheres meditando sobre seu próprio umbigo.

E há os experimentos em semiótica e desconstrução, o que é uma picaretagem acadêmica e uma maneira de acadêmicos ganharem dinheiro sendo esnobemente obscuros.

Wolfe pegou os ingredientes da novela de televisão e do filme idiota e lhes deu um tratamento de alta categoria literária e nos forneceu os fatos sobre os ricos e miseráveis, que mal temos nas nossas deploráveis imprensas. Neste sentido, é um inovador e merecedor de todas as honras. No mais, ajudou "Harper’s" a sair da total obscuridade e continua nos divertindo como iconoclasta. É da minha idade, mas perto dele tenho a mansidão de São Francisco...

(FSP, 08/02/90) - Nova York - Eu, não - Outro dia cismei de escrever sobre Hemingway e me enganei no nome da jornalista que o descreveu indelevelmente no "New York". Chamei a mulher de Lillian Smith. É Lillian Ross. Mas, pelo menos, não havia outros erros que eu possa perceber. O que não é mau para um cabra da minha idade que escreve quase tudo de cabeça. Aos 32 anos tive um colapso nervoso e esqueci duas semanas da minha vida. Um dos sintomas foi um ensaio sobre o mesmo Hemingway que escrevi para a revista "Senhor" antiga. Carlos Drummond de Andrade me telefonou dizendo que estava muito bom o artigo mas que o nome dos livros e das personagens pareciam todos trocados. Daí à longa noite das trevas. O "colapso" durou alguns dias. Lembrei tudo, rapidamente. Contei isso num livro.

(FSP, 08/02/90) (*) Literatura contemporânea - Há qualquer coisa insuportavelmente mecânica e de segundo time nesse desespero dos modernos.

(FSP, 08/02/90) - Nova York - A loteria literária - A cotação literária é meio lotérica, mas existe e é impossível negar, ou moralizar sobre o assunto, isto é, reclamar de injustiça etc. Por exemplo, John Ashberry, Ted Hughes e Seamus Heaney, são muito cotados como poetas, mas nenhum dos três é considerado "herói cultural", de que, em poesia, o último foi Robert Lowell, que morreu 13 anos atrás, num taxi.

Lowell era personalíssimo. Grande parte de sua poesia é transcrição poetizada de conversas com amigos, mulheres, amantes, filha etc. Depois do (falso, a meu ver) impessoalismo de Eliot, o herói cultural dominante até 70, o tom pessoal de Lowell, Dylan Thomas, e até de John Berryman, nos seus melhores momentos, era bem-vindo. O próprio Eliot previu isso num ensaio inigualável sobre a influência de Poe, Valéry e Pound na poesia moderna.

Mas nenhum poeta vivo e atuante é considerado como Thomas Pynchon ou Martin Amis. Pynchon acaba de lançar "Vineland", o romance mais discutido do momento, que já está em segundo lugar na lista de best-sellers do "New York Times". Me pergunto se não é o esnobismo cultural, que leva muita gente a comprar esse livro para tê-lo na estante, para mostrar aos amigos. Não consegui, por exemplo, ler "Gravity’s Rainbow", a última obra de Pynchon, 17 anos atrás, e mais uma vez embatuquei com "Vineland", apesar de admirar o humor de Pynchon, como quando ele coloca Woody Allen, como "Jovem Kissinger". Mas as personagens centrais se chamam Frenesi Gates, mulha, e o "vilão" se chama Brock Vond. Mais uma vez confesso meu caretismo matriculado. Não vou me agachar para ler história em quadrinhos. Dá reumatismo. Frenesi é corrupta. É uma "donnée" que todo mundo é corrupto em arte supostamente séria nos EUA. É tão indiscriminada e inespecificada essa caracterização que equivale à "inocência" artificial e bajuladora do populacho da Hollywood do tempos dos grandes estúdios. Não sei se me entendem. Se não, azar. E Pynchon, Jesus Cristo, culpa a televisão, o "tubo", a máquina de fazer doido de Sérgio Porto, por tudo. "O tubo está envenenando o teu cérebro". Minha opinião é que cérebro envenenado por televisão estava procurando veneno. Assim como quem se vicia em droga é porque se viciaria em qualquer outra coisa semelhante, ou seja, por deficiência e vulnerabilidade pessoais. (...)

Martin Amis é diferente. No Oxford Companion de literatura inglesa, editado por Margaret Drabble, que comprei, o quê? Alguns anos atrás, ele não é sequer citado, mas seu pai, Kingsley Amis, sim, e na época Martin Amis quando era comentado chamavam de Amis fils, filho. Agora, não há a menor chance de que isso aconteça. Ao contrário. O provável é que chamem Kingsley Amis de père. Martin Amis se tornou o escritor mais famoso da Inglaterra. Sem o gênio comercial de Pynchon, ainda não é best-seller automático. E parece que desagrada às feministas americanas que têm enorme influência nos suplementos literários dos EUA e que promovem "n" moçoilas fuleiras que produzem ficção idem e que somem sem deixar traço depois do primeiro ou segundo livro.

Há por exemplo no novo livro de Martin Amis um personagem chamado Keith Talent. Keith fuque-fuque todas as mulheres e nunca está saciado. Um garanhão como nos livros pornográficos da nossa infância. Mas não há tentativa de agradar, Keith é um monstro. Maltrata horrendamente sua mulher e outras mulheres. Come troços pelando com um molho tão forte que lhe sai fumaça pelos ouvidos e nariz. Usa um perfume chamado "Outrage". Estamos, I’m sorry to say, novamente no terreno de historias em quadrinhos.

Há um Samson e uma Nicola numa relação sadomasoquista de fazer gosto. Nicola pensa em termos de ficção pornográfica. Samson, o narrador, está também escrevendo o livro (êta, modernismo) e é um canalha da pior espécie. Mas antes de deixar o livro pelo meio percebi, com ajuda de críticos nenhum, que Martin Amis quer nos mostrar como seria a vida e como seriam as pessoas num mundo destruído por bombas nucleares. Abortos, abantesmas, os equivalentes humanos de baratas e ratos é que sobreviveriam.

Se alguém leu um livro chamado "Stanley e as Mulheres", de Amis père, talvez se sinta como eu. O narrador, que se parece muito em temperamento com "perè", à parte baixar o xanfalho nas mulhas, que acha todas loucas, mentirosas, farsantes - o livro levou três anos para sair nos EUA, por obra e graça de uma senhora de idade, editora, que mandou as mais jovens àquela parte; homem algum tomou a iniciativa - tem um filho, que só diz sandices, o que leva o narrador a procurar uma psiquiatra (que é parecidíssima no que diz com Germaine Greer) e aí "se desenrola a trama". O livro é divertidíssimo, mas o filho, perturbado, merece especial atenção.

Só diz sandices, mas é tão incoerente", "artisticamente incoerente", que o que diz poderia passar por prosa "pós-modernista". Não conheço nem père nem fils e não li em parte alguma, mas macacos me mordam se essa personagem não é uma sátira de père a fils. Sou grande comprador de livros e tentei ler "Money", cujo subtítulo era "Uma Nota Suicida". O que sei de Amis fils é que tem uns 40 anos, talvez "lá vai fumaça", que é pequeno, bonitinho, e um grande sucesso com as mulheres. Casou-se finalmente depois de uma vida de esbórnia e teve dois filhos. Tomou-se de paixão pelos filhos e começou seriamente a se preocupar com guerra nuclear, com a destruição do mundo por essas armas, com o envenenamento do mundo etc.(...)

Nicola tem uma amiga fictícia chamada "Enola Gay". É o nome do bombardeiro B-52 que jogou a bomba em Hiroxima. Mas ainda, de um gosto suburbano supremo: Enola Gay era o nome da mãe do piloto. Há também "Little Boy" no livro de Amis, que é apelido de uma das bombas.(...)

Já Billy Bathgate, o nome do livro e da personagem é um romance de primeira classe, numa veia mais tradicional, mas que me satisfaz, em termos. O início é um esplendoroso pastiche de Josef Conrad, por quem o autor, E.L. Doctorow, tem obsessão, porque deu até o nome polonês de Conrad ao vagabundo-herói de "Loon Lake", que é chato, falando nisso. Mas Billy Bathgate não. Desde a poderosa cena de abertura no East River, aqui pertinho de casa, vemos Billy educado por Dutch Schultz, um dos maiores "gângsters" dos EUA, e, no desfecho, que não quero contar porque o livro vai sair aí, quando Billy supera Schultz, de quem sofreu horrores e viu idem, temos uma forte epifania das possibilidades do homem, porque Billy se livra para sempre da pobreza, de Schultz, vai para a universidade, se forma e hoje "tem um certo renome". Afinal, todos os três, Pynchon, Amis e Doctorow têm "um certo renome", para dizer o mínimo. Mas o desespero na obra de Amis e Pynchon é daquele tipo que desde garoto me irritava nos filmes de Hollywood, em que os ricos eram, ou terminavam, sempre infelizes, e nós que tínhamos queimado nossos tostões, saíamos do cinema presumivelmente reconfortados na nossa pobreza. Há qualquer coisa de insuportavelmente mecânica e de segundo time nesse desespero mecânico dos modernos.(...)

Mas nos seus três últimos romances Doctorow se voltou para a infância, sua e de seus contemporâneos. Acho que ele não consegue tolerar descrever a realidade atual, de adulto, que só consegue criar artisticamente se não se referir ao tempo presente, que acha intolerável. "The Lives of the Poets", ainda que a novela central seja, excluído o final, é uma extraordinária visão de Nova York, não a de Tom Wolfe, mas a boêmia, logo talvez no próximo romance, agora que a Guerra Fria parece ter acabado, Doctorow possa falar do dia de hoje sem precisar ser defensivo, porque a esquerda aqui é tão mal-vista. A vida dá muitas voltas, como dizem.

(FSP, 10/02/90) - Nova York - Mancadas da juventude... - Eu estava lendo a admirável biografia de Robert Calder de Somerset Maugham, "Willie, the Life of Somerset Maugham" (St. Martin’s Press, 439 págs., US$ 22,95), quando cheguei nas aventuras de "Willie" na Rússia, em 1917, aonde ele foi enviado como agente do serviço secreto inglês para ajudar as forças que queriam manter o país na Primeira Guerra, que entre as quais não estavam Lênin e Trotsky (os outros bolcheviques, Stalin incluído, hesitavam), e Calder fala do primeiro-ministro menchevique (sic), Kerensky. Bem, quem acha que Kerensky era menchevique não deveria ter doutorado em literatura inglesa, como Calder, que é professor em Saskatchewan, Canadá. Putisgrila é não saber o ABC da história moderna. Menchevique (minoria, em russo) foi o apelido que Lênin conseguiu propagar para seus adversários, no partido socialista, enquanto que Lênin chamava seus partidários de "bolcheviques’ (maioria, em russo). Os mencheviques eram liderados por Julius Martov, amigo íntimo de Lênin, talvez o único que ele tenha tido, Lênin, mas que nem por isso deixou de castrar Martov politicamente (que se exilou e morreu no mesmo ano que Lênin, em 1924).

(FSP, 10/02/90) - Nova York - O épico de Salman Rushdie. - Salman Rushdie ganhou sete páginas de ‘Newsweek" e capa esta semana. É o tipo de troço que não quero ler mas sou obrigado para me pôr a par. Mas acabei gostando. Salman me faz sentir como um humilde irmão da ordem beneditina, quando eu era criança, porque o ego dele é maior do que qualquer catedral, ou devo dizer mesquita? Às vezes acho que exagero nesta coluna e dou a impressão de prepotência. Meus amigos sabem que sou doce como mel. Alguns que não me conhecem bem ficam imaginando que ladro e mordo, mas sou uma pessoa afável, educada e sem preconceitos de qualquer espécie. Beijo minhas melhores amigas sem coragem de dizer a algumas que estão com mau hálito com esta mania de não comerem para emagrecer. Como São Paulo, agüento de cara alegre miríades de tolos.(...)

Mas Salman diz que livro só sobrevive para sempre em "paperback", que a edição capa dura, apenas, acaba esquecida. Waaal, não é bem assim. Afinal, como eu disse acima você pode comprar "Minha Luta", de Hitler. Se fosse exposto nas vitrines talvez provocasse protestos. Se encomenda de livreiros. E não é que "Os Versos Satânicos" seja leitura agradável como "...E o Vento Levou". Depois de passado esse bafafá, duvido que muita gente queira tê-lo. E, se quiser, encomenda.

(FSP, 15/02/90) - EUA - Para não ficar nesse assunto desagradável o caso Salman Rushdie merece um adendo que descobri em "Le Monde". A França tem tantos muçulmanos quanto a Inglaterra, mas na França eles não aparecem na televisão, como na Inglaterra, rejeitando o apelo de Rushdie, que comentei sábado passado, e que a sentença, "fatwi", do aiatolá Khomeini, a condenação à morte de Rushdie pelo conhecido mentecapto, continua de pé.(...)

Saul Bellow, que é judeu, caso alguém tenha esquecido, mas que é perseguido por lobbies judaicos por não ter escrito sobre o massacre da Segunda Guerra (sim, sim, isso acontece...), mas que não liga, deu uma entrevista sábado passado ao "The Independent", que no momento, é o jornal mais falado do mundo ocidental. Bellow diz que prefere a velha linguagem do preconceito, ou seja, que ele e outros visados levam na cara, do que a atual proteção étnica, isto é, as patrulhas a que estou me referindo. Diz Bellow que, ao menos, ao ser insultado o cara tinha direito à defesa, que, hoje, reina o silêncio da censura e que se tem de dizer amém a tudo que é besteira, do tipo quadro de giz em vez de quadro-negro. Bellow não perdoa. Diz que o dia em que os zulus escreverem um grande romance ele o lerá. Defende e só fala de cultura "highbrow". Alta cultura. Nada de igualar García Lorca ao sambista da esquina, na democracia xexelenta inaugurada pela contracultura nos sixties. Fica enfurecido com esse espetáculo diário no cinema e televisão dos EUA que é ver adolescentes brancos, dos dois sexos, imitando a falta de proteínas, a confusão mental do quarto mundo aqui das nossas ruas (Richard Gere é um bom espécime para se saber do que Bellow reclama). Imitam a inarticulação, o modo cafajeste, a linguagem limitada, intercalada de "you know, you know" ("você sabe, você sabe", a marca do analfabeto. Mas Bellow usa essa frase de maneira letal, como metáfora esse inexplícito, mas o evocando com "you know, you know", em "O Planeta de Mr. Sammler"). Bellow ainda não é tão explícito quanto Tom Wolfe, que no seu artigo sobre o romance, que comentei dois domingos atrás na Folha d’, excluiu todos os romancistas que não sejam do primeiro time, principalmente "minorias" e mulheres, o que despertou fúria compreensível em gente talentosa como Mary Gordon, mas o fato é que, apesar da promoção de "lobbys" feministas e liberais não há um romancista não-branco nos EUA - ao contrário da Inglaterra, que tem o inexcedível, no seu gênero, V.S. Naipaul - e não-homem que dispute sequer a finalíssima aqui de literatura. As mulheres "oprimidas" do século 20 produziram uma geração considerável. Basta lembrar Mary McCarthy, Diana Trilling, Dorothy Parker, Lillian Hellman, Gloria Emerson e Renata Adler, para citar os exemplos que me ocorrem. A geração da libertação não deu ninguém cujo trabalho valha as fitas da máquina em que foi datilografado ou a energia que gastou no processador de palavras. Talento há, algum, como o de Mary Gordon, mas não há McCarthy, foi um assombro, é, sobre o que nos diz da natureza da mulher, assim como podemos aprender nos volumes dos livros de Charlotte Bronté, ou George Elliot (Mary Anne Evans), porque são grandes escritoras "espontâneas", no sentido de que escrevem o que sabem e o que sentem - claro, sempre há um condicionamento qualquer, mas as duas se revoltaram contra tudo que se sabe do seu condicionamento - sem pressuposições ideológicas, ao contrário de escritoras de hoje, como Toni Marrison, subliterata consumada que recebe elogios exclusivamente porque é mulher e "afro-americana", como se auto-intitularia. Elaine Showalter, que é uma historiadora feminista não dada à histeria, ainda assim se espanta que as escritoras mais eminentes de hoje como Iris Murdoch (cujos personagens centrais são sempre homens), Doris Lessing (que sempre idem), ou Muriel Spark (idem) não queiram sequer saber de feminismo. Mas Murdoch, Spark ou Lessing, que acham as ideólogas do feminismo uma perda de tempo, na expressão menos indelicada, não falam contra, evitam o assunto, não querem enfrentar as patrulhas. Simplesmente não dão pelota.

(FSP, 17/02/90) (*) Desconstrutivismo - o desconstrutivismo prega que a simplicidade é também retórica e que se pode invertê-la em sentido pela filosofia da linguagem. Estrume. Orwell diz muito o que não quer dizer, mas diz principalmente o que quer dizer, como Sócrates ou qualquer outro escritor.

(FSP, 22/02/90) - URSS- O caso Pasternak - Dei nota sobre o centenário de nascimento, sobre seu mau comportamento com Stalin, quando discutiam Mandelstam, a opinião de gente insuspeita de ideologia antipática à de Pasternak, como Stravinski, sobre a ruindade de "Dr. Jivago", e me perguntei se os poemas são bons mesmos, já que só posso lê-los em tradução.

Eu me senti culpado o tempo todo porque não tive estômago para reler "Dr. Jivago", afinal, um marco, na história da luta entre tirania e liberdade de expressão, e na minha carreira como jornalista, porque em 1958 tive de enfrentar uma resistência férrea de stalinistas a quem eu publicasse um artigo defendendo o direito de Pasternak à liberdade. O incômodo estomacal é que eu não conseguia lembrar algo mais, à parte a ruindade, de errado no romance. Bem, Gabriel Josipovich, no "Times Literary Supplement", releu o livro e cita várias passagens de Jivago e amigos e especialmente da tediosíssima Lara reclamando da persistência dos judeus em que era filho de pai e mãe sem religião, mas o pai era judeu e Josipovich nota que o filho de Pasternak, Eugeny, nas memórias que agora publicou do pai ("Os Anos Trágicos", Collins, Londres), omite esse fato. Mais desagradável é que Josipovich cita um comentário de Pasternak lamentando seu desprestígio na URSS em 1949, em que se refere a si próprio como um "culto particular dos mais oprimidos membros da intelligentsia judaica". Pasternak queria ser considerado um russo "bona fides".

O artigo de Josipovich provocou logo uma carta de Isaiah Berlin, que conheceu Pasternak pessoalmente (tem um ensaio maravilhoso sobre ele e Akhmatova), e que admite as passagens antijudaicas de "Dr. Jivago", mas não atribuiu maior importância e chama a atenção sobre a grandeza da poesia.

Como escrevi antes, pode ser. É difícil saber em tradução, mas dá para perceber nessas, o que Josipovich nota, que Pasternak não é o grande poeta modernista que Rilke, Yeats, Auden etc., foram, e, sim, um poeta escrevendo à maneira de Thomas Hardy, com líricos pessoais sobre assuntos pessoais, e Josipovich cita vários exemplos que me parecem conclusivos.

E o pobre Pasternak, preocupado em ser aceito como russo, e não judeu, o que Josipovich diz ser um problema também com Mandelstam, judeu, melhor poeta que Pasternak, a meu ver, pelo que se pode julgar por tradução, e a quem Pasternak traiu sutilmente na conversa que teve com Stalin.

Pasternak seria um grande personagem de romance: preso a duas mulheres, admirando e detestando a revolução russa, resistindo - bravamente - à ortodoxia poética do PC, vivendo do que ganhava traduzindo Shakespeare e outros clássicos, mas, ao mesmo tempo, não cedendo a sua "dacha" de escritor privilegiado, enquanto Mandelstam, Akhmatova e Tsvetaeva comiam o pão que o diabo amassou. Tsvetaeva se suicidou e Mandelstam foi fuzilado e o filho encarcerado durante anos. Dizem que não há tragédia no sentido clássico, do herói com falhas graves, e que se pode quando muito criar tipos representativos da miserável mediocridade moderna. Não é verdade. É só olhar a leste da Europa.

(FSP, 22/02/90) - Alemanha - O "thriller" perfeito - O último P. D. Jates, "Devices & Desires", 430 págs., Knopf, US$ 19,95, volta na magreza dos primeiros livros, como "Cover Her Face" e "A Mind to Murder", e há um entrecho intrincadíssimo, que, por assim dizer, corre por si próprio, várias vezes nos surpreende e é difícil, a 100 páginas do desfecho, saber o que está acontecendo. É um bom "triller". Jates é excelente, quando não tenta fazer literatura, engordando extraordinariamente seus livros com nuances e mais nuances, e quando não exagera as perfeições já difíceis de tolerar do seu detetive, comandante Odam Dalgliesh. O último dela, "A Taste of Death", era ilegível, um gosto da morte que só se tinha depois que ouvíamos sinfonias e corais em torno da Dalgliesh. Le Carré tem o mesmo problema. Que saudades de "A Murder of Quality", um assassinato de qualidade, e "Call For the Dead", chamando os mortos, os primeiros livros dele, e, claro, a obra-prima, "O Espião que Veio do Frio", que se, é em última análise, implausível (Mundt, da Abteilung, serviço secreto da Alemanha comunista, não seria um bom agente inglês), lê-se de uma sentada, e várias vezes.

Todo mundo que escreve sonha em ter um "policier" perfeito, à la Simenon, que produziu centenas, mas quem mais além dele? Waaal, pelo menos Jates se recuperou nesse último livro do orgulho excessivo dos anteriores. Há uma série de assassinatos de mulheres perto de uma usina nuclear chamada Larsoken e Dalgliesh vai lá para receber um moinho de herança de uma tia e se vê às voltas com personalidades bem menos unidimensionais de que temos em policiais em geral. Talvez Jates descreva demais, acho que descreve, mas descreve bem. O título do livro, "Meios e Desejos", é tirado do livro de rezas protestantes, banido porque o populacho não entende.

(FSP, 24/02/90) (*) Conrad, Joseph - 0 problema de Conrad não é o que escreve. O que escreve é paradigmático e profético, de Coraçao das trevas a Nostromo. Mas me parece traduzido literalmente do polonês.

(FSP, 24/02/90) - O dicionário crítico da Revolução Francesa, da François Furet e Mona Ozouf saiu aqui, tendo 1.064 págs., publicado pela Harvard, e custando 85 dólares. Aí saiu pela Nova Fronteira. No "New York Review of Books", a resenha foi de Conor Cruise O’Brien, de primeiro time, que estranha a ausência de Saint Just, atribuindo-a à pressa, quando toda a imprensa deu que Furet resolveu excluir Saint Just por achar que não tinha a importância que a esquerda lhe atribuiu. Pior para o dicionário, porque é praticamente impossível estudar a Revolução Francesa excluindo Saint Just. Mas O’Brien tem muito de interessante a dizer sobre a Revolução. O fato mais óbvio e negado pela esquerda é que estimulou o mais reacionário nacionalismo e que, passado, digamos, o período idílico, entre 1789-1794, em nenhuma parte o chauvinismo foi mais violento do que em "La Grande Nation", ou seja a França. Napoleão perdeu dois milhões de jovens em guerras. O’Brien não cita esse fato. As populações dos países não passavam de 20 a 30 milhões. Ah, bons tempos. Sair à rua e não ver um espantalho em cada esquina. A França nunca recuperou esses dois milhões. Daí, as sucessivas surras que levou em 1870 e 1914, quando tecnicamente ganhou, por força da entrada dos EUA na Primeira Guerra, mas estava quase metade ocupada pelos alemães quando esses se renderam. Em 1940, outro vexame. O nacionalismo é uma das maiores pragas que a humanidade já conheceu, mas tão inevitável como sarampo. Quanto mais pobre o país, mais nacionalista. Não existe qualquer lei natural que explique isso. Quem viu, como eu, França e Itália, nos anos 50, morrendo de frio e fome, não chego a exagerar, e as reviu ricas e prósperas depois de fazerem o Mercado Comum, dispensa explicações ideológicas.

(FSP, 08/03/90) - Nova York - Ondas e marolas - Todo livro causa estardalhaço, segundo seus editores e publicistas e autores que querem, naturalmente, vendê-lo, mas raros provocam sequer uma marola. Um certo Brad Leithauser, luminar da nova geração, escreve no último "NYRB", que quanto mais se aventurou no último livro de Pynchon, "Vineland", mais ficou imaginando a quem se dirigiria este livro. Bem, a simples pergunta anarquiza o livro. Quando um livro nos interessa nem paramos um segundo para pensar porque sabemos instintivamente e vamos em frente até devorá-lo. Mas Leithauser, romancista e poeta, que desponta para o anonimato a meu ver, quer ser justo com Pynchon. Diz que a capa é linda por exemplo. Não é. É uma queimada que se vê em qualquer interior do Brasil. E nesse estilo tão comum no Brasil, de nunca se dizer diretamente as coisas, Leithauser nota que "Vineland" está longe de ser um desastre (sic), apesar de nos impacientar a cada minuto (sic). Livro que me impaciente a cada minuto é um c. "Vineland", como "London Fields", de Martin Amis, ou outro, a "História do Mundo em 10,30 Capítulos", de Julian Barnes, são livros comprados para mostrar aos amigos que vêm visitar e vêem que você os tem. Não os leram, como você, hypocrite lecteur, mas os exibem porque dá status, como você, meu caro. Por que o bom deus não nos fez mais simples, meu deus? Vanitas, vanitatis.

(FSP, 08/03/90) - Nova York - Ética jornalística - Ao contrário destes "eventos literários" o livro de Janet Malcolm, "O Jornalista e o Assassino", Knofp, 162 págs, US$ 18,95, foi lido por todo jornalista de primeiro time. Não é um time muito grande, por certo, mas é o que há, o escrete da profissão, digamos. Já me referi a ele, que saiu todo no "New Yorker" e na penúltima quinzena o "New York Review of Books" publicou-lhe o epílogo.

Livro austero, capa cinza, com chamadas de cores vivas ou gráficos chamativos. É para ler. É de leitura fácil, mas duvido que interesse ao não jornalista.

Começa assim: "Todo jornalista que não é muito estúpido ou cheio de si para perceber o que acontece no mundo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável".

Quando o livro saiu no "New Yorker" vários medalhões da imprensa o atacaram como pretencioso, injusto e na verdade "reação-formação", isto é, Malcolm estaria querendo se purgar de ter arruinado a carreira de um certo Jeffrey Masson, de quem escreveu um perfil devastador no "New Yorker’, pretendendo demonstrar que todos os jornalistas são perversos com ela.

Bobagem. Acho errado apenas o uso genérico de "jornalista", no caso. Sou, por exemplo, um comentarista. Não um repórter, embora às vezes tenha que expor como um repórter, o que estou, de resto, fazendo aqui sobre o livro de Malcolm. Mas o leitor sabe que é minha opinião que será os "noves foras". O diabo de Malcolm é o repórter. Ela discute o caso de Joe McGinnis, um repórter escritor, desses muitos que tentaram copiar o sucesso de "A Sangue Frio", de Truman Capote, que é um clássico literário. Isso Malcolm não diz. Digo eu.

McGinnis escreve muito mal. Mas com sucesso. Talvez porque escreva muito mal, como Tom Clancy, que ganha o que quer com seus livros de espionagem. Mas o julgamento de Malcolm, que escreve muito bem, não é estético. É moral. Mas me ocorre que os dois são inseparáveis. Não ocorre a ela.

McGinnis procurou o capitão Jeffrey MacDonald, médico militar, acusado de matar sua jovem mulher e duas filhas. Ele pôs a culpa em três "hippies" assassinos, à la Charles Manson. Foi condenado à prisão perpétua e apela a côrtes superiores. McGinnis se apresentou ao time de defesa de MacDonald, como crente na inocência dele, conseguiu permissão para participar das sessões de estratégia dos advogados de MacDonald, em suma, estava por dentro de tudo. MacDonald, condenado, McGinnis continuou se correspondendo com ele, há 42 cartas, reafirmando sua confiança na inocência do médico.

No livro que escreveu, "Fatal Vision" (Visão Fatal), que foi transformado em minissérie e talvez já tenha sido exibido no Brasil, McGinnis da primeira à última página acusa MacDonald como assassino.

Malcolm não duvida da culpa de MacDonald. Não entra no assunto, muito, ainda que cite um psicanalista amigo seu que diz que os três "hippies" que teriam assassinado as mulheres MacDonald representassem as três assassinadas no inconsciente de MacDonald...

Mas ela se choca porque McGinnis se fez de amigo e confidente de MacDonald para explorá-lo e contra ele. Tentou entrevistar McGinnis. Viu-o algumas vezes, mas quando ele percebeu o que ela queria fazer, deu o fora. Nota: MacDonald processou McGinnis e este chegou a um acerto, fora da corte de justiça, em que pagou a MacDonald 325 mil dólares.

Malcolm está aferindo o que é jornalismo real, se é um serviço público em que o repórter age como procurador do público e procura apurar "o que está acontecendo no mundo", e não explorá-lo para ganho próprio e se auto-degradando fingindo crer naquilo em que nunca acreditou.

É um problema ético dos mais complicados. Malcolm nota logo que não há inocentes. O entrevistado também está querendo usar o jornalista e há um duelo de malandragem. Com políticos e outros profissionais experimentados em mídia, na minha opinião, o jornalista perde. Quase toda entrevista que leio é um "levantar de bola" para o líder político, aqui, aí ou em qualquer parte.

Por isso acho sempre preferível arriscar uma opinião, porque passa a ser uma de muitas e dá ao leitor a oportunidade de julgá-la em contraste com outras. Agora, a reportagem que se propõe a apresentar fatos, dados, em suma que se propõe um retrato da realidade é, a meu ver, e de Malcolm, fajuta, limitada, e mais tendenciosa do que qualquer opinião.

O livro mais famoso de Malcolm é "Nos Arquivos de Freud". Ele procurou um certo Jeffrey Masson, professor de sânscrito e psicanalista, que havia conquistado a confiança de Anna Freud e outros guardiães dos segredos de Freud, que só serão revelados em 2020. Usou alguns dados para escrever um livro dizendo que Freud descartou a teoria da sedução de crianças pelos pais pelo complexo de Édipo e outras teorias, porque Freud temia ofender a opinião pública vienense da época. Adversários de Freud como os psicanalistas Charles Rycroft e Anthony Storr vieram em defesa de Freud. Afinal, até para o leigo deve ser óbvia a coragem de Freud em propor teorias que até hoje chocam muita gente e que são, por falar nisso, em grande parte, desconhecidas, tais como o instinto de morte e suas sombrias conclusões sobre o destino do ser humano.

Mas quem destruiu Masson foi Malcom. Ele se prestou a entrevistas com Malcolm em que ficou evidenciado o megalomaníaco, ansioso por ser "alguém" como Freud, sua vaidade sexual (tipo Ziraldo, pobrezinho, que papelão na Avenida). Masson ficou com a reputação arruinada. Mas Malcolm não aceita que seu livro sobre McGinnis seja uma purgação do "trabalho" que fez em Jeffrey Masson, que ela fez apenas entrevistas e que a edição destas entrevistas foi escrupulosa. Masson a processou já por duas vezes e perdeu em ambas. Tenta uma terceira. Diz que nunca mais foi convidado para nenhum posto acadêmico importante.

Uma discussão destas no Brasil sobre a relação entre repórter e sujeito, entrevistador e entrevistado, seria muito interessante.

(FSP, 10/03/90) - Rio de Janeiro - Vida de escritor - Leio na "Leia" uma entrevista com Aguinaldo Silva, um dos autores da novela da Globo, e que nos conta das alegrias de se ganhar bem e atingir um grande público, ao passo que quando escrevia romances, vivia mal e vendia só - no seu último livro - dez mil exemplares. Trabalhamos, Aguinaldo e eu, na "Última Hora", de Samuel Wainer, se bem que não me lembro se fomos exatamente contemporâneos. Eu era muito político e ele pertencia à escola Nelson Rodrigues e João Antônio, cronistas do Rio, cada qual à sua maneira, com seu estilo e propósitos diferentes, e talentos também. Mas Aguinaldo e muita gente talvez se surpreenda ao saber que a maioria dos romances aqui vende por aí entre quatro e dez mil exemplares. Menos na Inglaterra, 20 mil lá é best-seller. "Beste-seller" aqui é 50 mil, no Canadá, mil exemplares é considerado ótimo. Galbraith e Bellow, dois canadenses, notam que seus conterrâneos têm o mau hábito de "alugarem" o que querem ler de bibliotecas públicas particulares.

Mas a diferença é o marketing. Isto é, os editores que vão vender só dez de alguém chato como Tom Pynchon, por exemplo, vendem previamente o livro numa escala mundial, com grande promoção, em feiras de livros, através de agentes, anunciando em jornais do ramo etc. Um autor como Aguinaldo, que chamava atenção, me lembro, como romancista, teria aqui uma venda prévia assegurada de uns cem a 150 mil em todo o mercado não-comunista. E haveria adiantamentos substanciais dos editores. Só agora editoras pioneiras como a Record e principalmente a Companhia das Letras estão fazendo isso, consistentemente e com gana e garra, pelos seus autores.

É, claro, um admirável novo mundo se abre para todo escritor e, waaal, cineasta. Agora que o Leste europeu, que afinal é Europa, se livrou da canga stalinista, imaginem o mercadão. Antes só gente de esquerda, ou tida como de esquerda, era permitida e vendida no Leste europeu. E não se podia retirar os direitos. Jorge Amado é um dos raros que teve o privilégio de receber o seu tutu e não as mercadorias de quinta categoria, não, de categoria inclassificável, dos países ex-comunistas. Ainda me lembro de um coquetel há muito tempo em que ouvi John Steinbeck, também tido como de esquerda, mas passou à extrema direita no fim da vida, resmungando contra os "dammed commies" que não lhe pagavam os direitos autorais. E os filmes, imaginem, 40 anos de atraso. Vão renascer o western e os musicais, destruídos pela televisão. Posso imaginar audiências moscovitas descobrindo "My Darling Clementine" como se fosse novo, com o prazer que tivemos, na minha geração, em 1946. A multinacionalização das economias pode ser muito benéfica para quem vive da pena e da câmera cinematográfica.

(FSP, 10/03/90) - Nova York - A saga Abravanel - Estou adorando o livro de Alberto Dines sobre a família Abravanel. Issac, figura extraordinária, e Silvio Santos, seu descendente. Lembrei logo daquela bobagem fanática de Walter Benjamin que um repórter citou aqui na Ilustrada que a história não é como parecia a quem a viveu e, sim suscetível da análise, da descoberta de um subtexto marxista, com a eterna luta de classes (que Geoffrey St. Croix, que, no Brasil, só Merquior leu, descobriu até na antigüidade romana: êta ferro) e quejando. Walter Benjamin tem a desculpa de ter se suicidado em 1940. É provável que se vivesse mais se desse conta de que a história é precisamente o que pareceu aos que a viveram e que o marxismo é um anacronismo sem qualquer justificativa. A turma dos Anais franceses, os historiadores de maior prestígio no continente europeu, dedicaram vida e obra a demonstrar esse fato. E os empíricos ingleses não fizeram outra coisa, ignorando por completo Marx. Se você quiser saber alguma coisa sobre história, e não tiver tempo para ler muito recomendo os "Historical Essays", de A. J. P. Taylor, em especial o que dedica ao governo Lloyd George na Primeira Guerra. É a evidência mais cabal de que somos sintomáticos, representativos, e não expressivos. Isaac Abravanel foi um grande homem. Silvio Santos é o homem de massa, a quem Ortega y Gasset dedicou longos ensaios. A possibilidade existencial de revolta existe, claro, e fundamenta a única filosofia que muitos intelectuais levam a sério, a de Heidegger, mas a mim não interessa ir a esses extremos metafísicos, que acho vaporosos. Leio, por falar nisso, no "New Republic", uma resenha do que parece ser a primeira biografia de Ortega y Gasset. "Um Imperativo da Modernidade: a Biografia Intelectual de Ortega y Gasset", de Ruckwell Gray (Universidade Califórnia, 433 págs., US$ 25), ninguém precisa ler, mas vale a pena dar uma olhada nos dois clássicos de Ortega, "A Revolta das Massas", que certamente foi traduzida para o português, e "Meditações sobre Quixote", não me lembro muito bem se foi nos anos 50 ou 60 (antes da "contracultura"), mas houve tempo em que Ortega fazia parte do vocabulário do todo intelectual, ou aspirante a, brasileiro. Ortega teve uma influência extraordinária sobre Eliot, Mannheim e Valéry. O resenhador do "New Republic", Robert Boyers (editor de "Salcamundi", uma das revistas intelectuais legíveis da praça), diz que Rockwell Gray considera que Ortega não é levado a sério no meio acadêmico porque escreve bem demais (sic e !!!!!!!!!!!!!!!!!!). Já tinha ouvido a referência de Aldous Huxley a Platão, isto é, que Aristóteles dominou a filosofia ocidental durante 2.000 anos, porque Platão escrevia bem demais. Pensei que fosse uma "boutade". Mas a experiência me ensinou que o amor ao Jargão e à obscuridade, ou obscurantismo, na minha opinião, são condições sine qua non de aceitação no meio acadêmico. Há, claro, exceções, marcantes, em particular no meio anglo-americano. Acadêmicos tais como Frank Kermode e John Dayley resistem agressivamente à moda em publicações que continuam felizmente as mais importantes, como o "Times Literary Supplement", "The London Review of Books", e o "New York Review of Books", apesar de sinais de visível cansaço do editor Robert Silvers, que a dirige desde a fundação em 1963, é alérgico a "pós-modernismo" e "desconstrução", que são o mais distinto subproduto da influência nefasta de Heidegger em filosofia. Orwell escreveu que o amor ao obscuro, ao jargão, traía a mente fascista e totalitária. Heidegger foi nazista, e não é preciso o livro algo tedioso de Victor Farias para saber que ele morreu crente de que o nacional socialismo nos seus primórdios era o breque certo ao domínio do homem pela tecnologia.

(FSP, 15/03/90) - Ecos de Prestes - No livro "Olga", de Fernando Morais, li fascinado que Harry Berger, o companheiro de Prestes e Olga, em 1935, tinha estado na China e passado a cantada num funcionário inglês Rogr Hollis, para convertê-lo ao comunismo. Esse Hollis terminou como chefe do serviço de segurança da Inglaterra, MI-5, e acusado de ser o "quinto homem", ou seja, o quinto depois de Harold Philby, Guy Burgess, Donald MacLean e Anthony Blunt, já revelados como da KGB, que teria traído o governo de sua majestade. Bem, não segundo Fernando Morais.

Mas é claro pela leitura que Olga deveria ser agente da OGPU, agora KGB, posta ao lado de Prestes, para vigiá-lo, para conter possíveis tendências trotsquistas ou seja, autenticamente revolucionárias, no homem que afinal chefiara a célebre Coluna. Stalin não gostava de revolucionários reais que pudessem mostrar independência. Mas Olga, aparentemente, se apaixonou por Prestes e ele por ela. É muito bonita a descrição que Fernando faz de Prestes fazendo moldes de vestidos para Olga, quando os dois estavam na clandestinidade. Quem diria...

(...) Outro dia comento a "História da Criada". Por falar nisso, segunda-feira enviei um artigo sobre D. H. Lawrence, para sair sábado, no Letras. Mas fiquei intrigado e disse no artigo que este livro dele, "Apocalipse", eu não conhecia, quando imaginava conhecer e ter lido quase todos. Cheguei a incomodar um conhecido para saber que se tratava de um livro póstumo publicado por Frieda Lawrence em 1931. Quando despachei o artigo embaixo encontrei o livro remetido a mim, pela Companhia da Letras. Vou lê-lo em português, para experimentar. Preciso me habituar a ler mais nesta nossa língua. Geralmente prefiro que me contem o que saiu pelo telefone. Um mau hábito. Mea culpa.

(FSP, 17/03/90) - EUA - A cerimônia do adeus - Foi Flaubert que fazendo Emma Bovary vomitar negro, mortalmente, em "Madame Bovary", enquanto lá fora fazia um céu de brigadeiro (Hum... Você sabe a origem do nome do doce brigadeiro? É obscena), que os faz excuse me, me faz aceitar com cara-de-pau uma notícia trágica, o suicídio, aos 86 anos, de Bruno Bettelheim, um adeus inesperado do sobrevivente de Dachau, que achava o diário de "Anne Frank" imbecil, pois num mundo como o nosso, Anne, no final, diz confiar na bondade da raça humana... E ao mesmo tempo saber que Ribamar transformou compulsoriamente a cerimônia de posse de Collor, um dia antes, numa despedida longa dele, Ribamar, das delegações visitantes, que vieram para a posse de Collor, obiviamente, eleito pelo voto, e não para ver as costas desse "presidente", resultado de um cambalacho, que se comportou como uma mutreta ambulante e de quem nunca mais espero ouvir falar o nome ou ter de citá-lo.

O suicídio de Bettelheim foi procedido do de Primo Levi, de quem, dolorosamente, estão sendo publicadas obras póstumas em inglês (não leio, infelizmente, italiano), isto é, obras que nos dão um Primo vivo, o primo que conseguiu manter uma distância de Auschwitz, isto é, não caindo no pieguismo de um Elie Wiesel, nwm n dureza talvez excessiva, reconheço, de uma Hannah Arendt. Se esses homens não aguentam mais viver, o que nos resta? After such knowledge, what forgiveness?

Claro, Bettelheim tinha 86 anos, tinha sofrido um insulto cerebral, e não se conformava com a morte da mulher, recente. Caiu na tentação suprema, o pecado mortal supremo. Mas não há pessoa minimamente inteligente que já não tenha pensado em segui-lo.

Levi se atirou escada abaixo depois que lhe morreu a mãe, uma velha inválida de quem ele cuidava e que era provavelmente seu único elo afetivo com o mundo. Foi cridicadíssimo pelos provedores de kitsch judaico, Israel e tudo mais, para que Levi, Betteheim e Freud nunca pareciam ter tempo ou interesse, mas o comentário mais ingênuo e involuntariamente cômico foi de William Styron gentio, sulista, "wasp", aristocrata anglo-americano, grande admirador de Levi, que escreveu no "Times" que se Levi sofria de depressão, uma doença, curável, como a depressão dele, Styron. É só encontrar a droga e a companhia certa. Como isso é americano. Não há melancolia ou angústia incurável. Não há bem ou mal. Há psicopatas.

E se você gosta de sua mãe, ela morrendo, não te deu vontade de morrer? Que Styron ache que tudo é curável (a falha central de "A Escolha de Sofia", porque horas tantas Nathan, personagem cheio de vida, é explicado como psicótico. Não precisávamos disso), talvez seja a melhor definição de suas limitações como romancista.

Ele nunca foi capaz de criar uma cena como a que Janet Malcolm conta em "O Jornalista e o Assassino". Sim, esse livro me fascina. Em face do infantilismo jornalístico predominante no Brasil,lêlo foi como uma injeção de maturidade. Mas tentando expor criticamente o caráter de McGinniss, que escrevi errado com um "s" só no final, Malcolm conta que ele e Styron tomaram um enorme pileque juntos e dormiram. McGinniss acordou primeiro, estava na casa de Styron, e foi à geladeira. Muita coisa, mas ele escolheu um caranguejo especial, que sabia trazido de certa região no Sul dos EUA, e que Styron, gourmet e cozinheiro, certamente deveria estar guardando para alguma ocasião especial e não para matar a fome que vem depois que se bebe muito. Assim mesmo McGinniss cozinhou o bicho. Styron acordou, viu o estrago, mas delicadamente nada disse e acabou partilhando o repasto com McGinniss. Uma voz na minha cabeça repete e repete a frase de Norman Mailer de que Styron é um menino gordo...

Se o Popeye de William Faulkner acordasse e visse o furto audacioso de McGinniss, McGinniss não sairia vivo da casa. Mas Malcolm está querendo, no livro, mostrar o mau caráter de McGinniss (o que consegue plenamente; a reputação dele nunca será recuperada) e não as fraquezas de Styron.

(FSP, 17/03/90) - Nova York - Bettelheim nu e cru - Ler o obituário de Bettelheim no "Times" é como ler o final de "A Fogueira das Vaidades", de Tom Wolfe, uma paródia extraordinária do conteúdo e estilo do jornal, sutilmente errado em tudo, mas contendo alguns fatos verdadeiros. Diz o "Times" por exemplo que Bettelheim, que se especializava na terapia de autistas (a essa altura acredito que o leitor já tenha ouvido falar de Dustin Hoffman em "Rain Man"), achava que a causa do autismo eram mães ‘esquizofregênicas". Ou seja, geneticamente esquizofrênicas. Esquizofrenia, descoberta, isto é, definida por Bleuler, sempre foi um problema psicanalítico. Se escreveu muito "em torno" do assunto, mas, que eu saiba, sua origem genética não está em dúvida. Mas o "Times" diz que Bettelheim foi refutado. Não há, claro, mães responsáveis. A doença é um acidente do destino, e quem sabe teu filho incomunicável, minha amiga, será tão genial quanto Dustin Hoffman em "Rain Man"? Ah, América!

O "Times" menciona que Bruno Bettelheim foi contra a contracultura ativista dos anos 60, responsabilizado os pais pelo "neonazismo" dos jovens, em que não reconhecia qualquer legitimidade política (posição de resto partilhada pelo ícone da esquerda jornalística, o fundador de "Le Monde", Hubert Beuve-Meury), mas o "Times" não nos diz que Bettelheim ridicularizou por extenso o feminismo antripatriarcal e que insistiu na distinção clara entre os sexos. É patrulha.

Não é preciso entrar nisso.

Uma prova só basta da vitalidade intelectual de Bettelheim e sua relevância para nós: se você acha psicanalista chato, não quer saber de feministas ou de crianças (a especialidade, repito, de Bettelheim) basta ler "Surviving and Other Essays", seu livro de ensaios publicado há alguns anos (como de costume não consegui achá-lo para as devidas citações. Preciso de uma ama-seca). Há de tudo, uma resenha altamente elegiosa de "Eichmann em Jerusalem", de Hannah Arendt, e um pau fortíssimo em "Pascolino Sete Belezas", o filme mais famoso de Lima Wertmueller.

Onde se meteu, Bettelheim controverteu. Peter Gay acha "cranky", maluquinho, o livro "Freud e a Alma do Homem", de 1982. Sim, até certo ponto. Bettolheim exagera nos supostos abusos de linguagem na tradução de Jates Strachey, "standard", das obras completas de Freud. Mas o livro é devorável de uma sentada, porque Bettolheim defende Freud contra os "tecnologistas", os esquematizadores de tudo, em suma, a gente que está na moda hoje em dia. E o fato, talvez lamentável, é que a obra de Strachev, que, sempre, confesso, achei admirável, é a única edição autorizada das obras de Freud, ou seja, em inglês, uma línguagem que ele conhecia, mas Freud, como Bettelheim, era austríaco, ou seja, alemão, e como Heidegger escreveu, nenhuma outra língua é capaz de expressar com clareza profundidades filosóficas (é por isso esta obsessão francesa, de Sartre a Derrida, de imitar o obscurantismo alemão. Arruinaram a clareza de Descartes e nada puseram no lugar, exceto tédio e ininteligibilidade).

O livro mais famoso de Bettelheim é "Os Usos do Encantamento" que me disseram traduzido para o português. Não é tão original e fascinante quanto "A Interpretação dos Sonhos", de Freud, mas não houvesse o comitê do Nobel enlouquecido há muitos anos esse livro bastaria para que Bettelheim ganhasse o prêmio Nobel.

Ele foi salvo de Buchenwald e Dachau pelo governador Lehman, de Nova York, e Eleanor Roosevelt, diz o "Times". Digo eu que é pouco provável que Hitler desse atenção a Lehman, judeu, apesar de rico e governador de Nova York. Foi para agradar Eleanor, mulher do presidente dos EUA, que Bettelheim foi solto. Mas sua análise dos campos de extermínio, tendo ele escapado do massacre, condição que atiraria muitos sobreviventes no desespero e sentimento de culpa, justamente por sobreviverem, não afeta o discernimento com que Bettelheim discute suas experiências e sua convicção de que só quem acreditava que a vida era algo mais do que "consumo", em suma, que era feito de metal mais valioso, espiritualmente, é que sobrevivia. Isso foi considerado profundamente ofensivo pelas famílias de muitos que morreram, mas Bettelheim, como Freud, acreditava em dizer sempre o que pensava. O preço pode ser, sempre é, alto, para essa atitude.

O "Times" de quarta-feira deu o obituário e o de quinta procurou explicar porque Bettelheim se suicidou. Há o fato de que a velhice obrigou-o a mudar-se de seu confortabilíssimo apartamento para uma clínica, de primeira qualidade, de amparo à velhice. Bettelheim estava brigado com uma de suas filhas, mas a outra, de quem gostava, também não quis recebê-lo em casa. Não sei como como andam as coisas no Brasil, mas aqui o velho costume do Neandertal, de deixar velhos expostos para morrerem, voltou à moda. Não é muito comum, para dizer o mínimo, que os filhos recebam os pais. É verdade que velho sabe ser chato e Bettelheim era orgulhoso como o Satã de Milton, mas disfarçava essa qualidade no estilo impecável e qualidade da obra.

Agora, no dia-a-dia, só íntimos poderiam dizer.

O que pensaria Bettelheim de Tânatos, o instinto da morte de Freud? Talvez eu não tenha lido o livro onde está sua opinião, mas ele asfixiou a si próprio, enforcou-se, em suma.

Uma homem singular. Como ele houve poucos. Basta ler por exemplo "Uma Assimetria Secreta", no seu último livro, "Freud’s Vienna & Other Essays", Knopf, 281 págs., US$ 22,95, um ensaio sobre as relações de Freud e Jung com uma psicanalista e ex-paciente de Jung e Freud, Sabina Spielrein, uma figura lendária na história da psicanálise, para ver que não há intelectual igual escrevendo sobre psicanálise. Seu estilo, claro, é simples, dirigido ao leitor instruído, inteiramente despido do jargão, e a agudeza e generosidade de Bettelheim, sabemos, são coisas que o "establishment" psicanalítico, de qualquer escola, hoje rejeita por completo. E essa gente horrível que trata lieteratura como disciplina científica, filológica, ou qualquer que seja a asneira vigente.

Há muito porque se suicidar. Acídia é a condição da maioria das pessoas que me são contemporâneas e que permaneceram amigas. E é mais por egoísmo que lamento a morte de Bettelheim, porque não poderei mais recorrer a ele quando algum problema me provocar o dilúvio de ambivalência que hoje aflige qualquer intelectual, e de que só pessoas muito mais velhas, que poderiam ser pais da minha geração, como Bettelheim, parecem imunes.

Ele escreveu muito sobre como se manter autônomo numa sociedade de massas. Mas o "nó apertou muito" desde que o li.

(FSP, 17/03/90) (*) Lawrence, D. H. - D. H. Lawrence e sua mulher, Frieda, se adoravam, odiavam e entredevoravam. Ele obviamente não conseguia viver sem ela, e Frieda é modelo de quase todas as personagens femininas de Lawrence, principalmente de Ursula e Gudrun, no melhor e mais significativo de Lawrence, Mulheres apaixonadas, em que Frieda é Gudrun, a mulher dominada pelo macho e feliz, e Ursula, a mulher que domina o macho e o destrói. E nesse livro e em The rainbow que Lawrence chega à altura de Joyce e Proust. Lawrence é o espírito protestante da revolta. Esses livros, de uma vibração sem paralelo entre seus contemporâneos e sucessores, mostram o inconformismo de gente da pequena classe média, com sua condição na sociedade de classes da Inglaterra, sob a hipocrisia da Igreja anglicana, que se revolta com todos os seus poros e procura uma vida de expressão total dos instintos.

(FSP, 24/03/90) - EUA - Li até altas horas da madrugada "The Borrowed Years 1938-1941 America on the Way to War", de Richard M. Ketchum, Random House, 882 págs., US$ 29,95, porque sempre me fascinou esse período pré-entrada dos EUA na Segunda Guerra, que é (como nesse livro) dominado pelos historiadores pró-Roosevelt, pró-intervenção, que veio finalmente quando os japoneses atacaram Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941. Alternei com o interessantíssimo "Why Did the Heavens Not Karken?", de Arno Mayer, que comprei em paperback por US$ 15,95, Pantheon, 508 págs. O livro vale mais pelo prólogo, é sobre o massacre dos judeus, assunto que me parece esgotado por Reitlinger e Hilberg, mas Mayer tem muito a dizer no prólogo, como "poucos, se é que ainda há alguém, estudiosos bem fundamentados do judeocídio (como ele chama o "holocausto") ainda mantêm a opinião de que Hitler tinha a intenção preconcebida e um plano mestre para liquidar os judeus, desde o início do movimento nazista e do regime". Isso deve ser novidade no Brasil e mesmo aqui, mas não em círculos informados. O livro de Ketchum me interessa porque me lembro que os "isolacionistas", os que se opunham à intervenção dos EUA em guerras na Europa, achavam que as Américas tinham tudo que os EUA necessitava e que os EUA deveriam se associar aos Estados americanos e ajudá-los a crescer economicamente, em vez de desperdiçar recursos e vidas na Europa.

(FSP, 24/03/90) - França - Sábado, acordei às 11h, só para telefonar a um amigo para marcar um encontro e voltei para a cama, onde dormi até as quatro da tardem quando um telefonema de uma secretária da comissão de autores, cerca de 350, incluindo Arno Mayer, Kurt Vonnegut, Czeslaw Milosz, William Styron, Arthur Miller e Robert Stone, me acordou pedindo minha assinatura de protesto contra a demissão de André Schiffrin, o ex-editor chefe da Pantheon Books, a editora que se especializa em publicar livros controvertidos. Começou em 1942, quando um jorvem exilado, Kurt Wolf e sua mulher, Helen, editaram de um quarto de hotel Franz Kafka e fundaram a Pantheon. A empresa cresceu, publica realmente todos os "maudits" americanos, como Noam Chomsky, mas em 1961 foi comprada pela Random House, que nos anos 70 caiu na mão de S.I. Newhouse, um novo rico, valendo US$ 10 bilhões, filho de um notório gângster e pessoalmente iletrado, mas que quer entrar na sociedade comprando artefactos culturais. É proprietário de um império, que inclui "Vanity Fair", "Vogue" e outras tralhas, e toas as editoras do grupo Random House. Não sabe escrever todo dia às 4h15 da manhã, onde deve ficar bolando novos esquemas para aumentar a saída do seu nome nas colunas sociais... Mas Newhouse resolveu se fazer notar de uma maneira esperta, até certo ponto. Primeiro sonseguiu a demissão de um craque, Robert Bernstein, diretor-presidente da Random House. Bernstein não deu razões. Shiffrin e mais seis editores da Pantheon também se demitiram sem dar motivos. O motivo é que todo mundo levou um cala-boca gigantesco, enquanto que Newhouse, seu maior erro, colocou à frente da Pantheon um certo Alberto Vitale, que é um mero contador. A comunidade literária explodiu. Schiffrin deveria também ter um mínimo de vergonha na cara. Seu pai, Jacques, é o criador da biblioteca da Pleiade, na França. Tem um nome a zelar.

(FSP, 29/03/90) (*) Ingleses - O que gosto nos ingleses é que preferem jornalismo ou literatura popular a se enfurnarem na academia.

(FSP, 07/04/90) - Brasil - Pedi que me dessem dicas de livros ou artigos de Richard Burton sobre o Brasil, e um leitor me envia a informação. Há publicado "Viagens aos Planaltos do Brasil", em dois volumes, editora Nacional, São Paulo, 1983. Conheci Octales Marcondes Ferraz, quando sogro de Ênio Silveira, que era o maior acionista, se não o único, da editora Nacional, que nesse tempo dominava perto de 40% do livro didático no Brasil. Uma vez me mandaram "1984", de Orwell. A tradução era ruim, mas não é quase sempre? Marcondes Ferraz morreu nos anos 60 e nunca mais ouvi falar da editora Nacional. O leitor nota que Burton já havia previsto que o Rio não seria por muito tempo capital do Brasil. Se Duguay-Trouin ou Maurício de Nassau tivessem resolvido ficar por aí, evitaríamos por certo o vexame de Brasília, apesar do mau olhado certeiro de Burton.

(FSP, 07/04/90) - Brasil - De passagem aqui meu velho amigo. Sábato Magaldi, com sua mulher, Edla van Steen, escritora que tem um conto, "Sr. e Sra. Martins", publicado em inglês numa antologia da respeitabilíssima Norton, numa coletânea chamada "Sudden Fiction", com 60 contos, 341 págs. US$ 10,95. Sábato foi o primeiro crítico de teatro da minha geração a tratar teatro inteiramente a serio no Rio. Somos mais ou menos contemporâneos, mas eu o lia com prazer e aprendi muito. Desde outubro o casal não vai ao Brasil. Sábato estava ensinando por uma temporada em Aix-de-la-Provence, um paraíso.

Jantamos juntos e lembramos os tempos de civilização no Rio e São Paulo. Parece que foram no século passado. Pensávamos em criar um teatro brasileiro com nossas características específicas de cultura, mas sem chauvinismo, abrindo passagem aos clássicos. Jogou-se muito idealismo nisso. Havia alguma safadeza. Essa "Cat" de Kazan, que vi na Broadway, foi encenada pelo TBC no Rio, e, para indignação minha, o diretor Maurice Vaneau copiou tudo de Kazan, até o movimento dos atores (marcação). Meti-lhe o chanfalho, mas fui avisado que, afinal, Vaneau copiava do melhor... Nosso destino de macaquitos é velho. Tomou conta até desse francês, Vaneau, que passou de passagem, como nas corridas de cavalo, por aí.

O casal Edla e Sábato é encantador.

(FSP, 07/04/90) - Rio de Janeiro - Dei uma lida num livro que recomendo, "A Constituição de 1988", que tem o subtítulo sugestivo de "Um Avanço do Retrocesso". "Do" e não "sobre". Publicado pela Rio Fundo Editora, r. Martins Ferreira, Botafogo, Rio, CEP 22271. Um grupo de intelectuais como Antônio Paim, José Guilherme Merquior, Roberto Campos e outros, sob a coordenação de Paulo Mercadante. Destrincham o "Frankestein" escalafobético produzido em Brasília, de 545 artigos, algo inédito na história. A dos EUA não chega a 30 artigos. A inglesa não existe. Mas nós, com a mentalidade burocrática francesa e a desconfiança do português tínhamos de parir esse abantesma, de resto virada do avesso pelo primeiro Incitatus que aparece. Mas, waaal...

(FSP, 12/04/90) - EUA - Eu poderia ir muito adiante. Há um livro desagradável de Robert Caro, "Os Meios da Ascensão", "Means of Ascent", sobre a figura falstafiana de Lyndon Johnson, presidente 1963-1968. Li trechos no "New Yorker", e esse já é o segundo volume (...) e Caro vai chegar a 1964, quando Lyndon Johnson fez passar a mais extensa legislação de direitos civis desse país, tornando-se um "ícone" do liberalismo, o qual, porém, desmoralizou por completo envolvendo os EUA numa escalada da guerra do Vietnã, que destruiu a economia do país, criou uma cisão até hoje irremendável na sociedade americana e, em consequência, botinou Lyndon Johnson da Casa Branca em 1968, isso quando a reeleição dele parecia certa.

Cisma e "desconstrução", constantes históricas. Se quer uma coisa e se obtém precisamente o oposto e a vaidade dos poderosos atrela irremovivelmente suas cabeças à persistência no erro.

(FSP, 14/04/90) - Nova York - Simone Weil - Li esta semana "Utopian Pessimist", de David McLelan, Poseidon Press, Nova York, 316 páginas, US$ 22,95. É sobre Simone Weil, não confundir com Simone Veil, que esteve em Auschwitz e foi ministra de Giscard Déstaing. Simone Weil morreu na Inglaterra, de fome, agravada por tuberculose, porque cismou de comer o mesmo que imaginava que os mais pobres franceses estivessem comendo durante a ocupação alemã. David McLelan expõe com a habitual clareza as idéias de Simone, não muito desenvolvidas, porque morreu com 34 anos. Mas é interessante notar como ela desfaz a balela de Marx, a quem muito admirava, de que "a existência social" forma a consciência, quando, nota Simone, a existência social já é a consciência. Mas isso tudo é o "jovem Marx", que os marxistas mais empedernidos acham perda de tempo.

Simone era de um profundo moralismo religioso, expresso em grande atividade em favor dos oprimidos. Há quem a ache doida de pedra, De Gaulle, por exemplo, e a história de ela detestar contato físico merece talvez análise mais profunda do que a de McLellan. Simone nasceu sadia, mas sua mãe passou mal e desenvolveu apendicite. Simone começou a ficar doente também, adquirindo igual apendicite. Se há um caso em que as variações psicanalíticas de Melanie Klein se aplicam, é este.

Seus cadernos são famosos e sempre publicados, nunca fora do prelo. A agudeza mental de Simone é indiscutível. Ela defende a idéia de uma comunidade anarco-sindicalista, mas com uma consciência (e existência social...) muito acima desta "galère". Um dos seus mais famosos ensaios, "Sobre a Personalidade Humana", merece todos os elogios recebidos, mas "A Ilíada, um Poema de Força" me parece carente de experiência social. Ela cisma em especial com Aquiles e descreve a cena em que Aquiles abate um troiano e esse lhe agarra os joelhos e pede piedade. Aquiles zomba do pobre coitado e o mata. Simone tinha especial horror da brutalidade dos romanos, fazendo a habitual analogia com Hitler. Waaal, mas se lemos o que Aquiles diz ao troiano, como homens, entendemos algo talvez fora do alcance de Simone, mulher. Aquiles ironicamente diz ao homem que vai matar que é esse o destino do guerreiro e que ele, Aquiles, apesar de filho de Tetis, a deusa, não escapará do mesmo destino, porque tudo está previsto. É um exemplo supremo do fatalismo trágico dos gregos e não da crueldade anacronística que Simone deplora.

Ela era judia não praticante e admirava muito o catolicismo só não se convertendo porque a Igreja aceitava o que chamamos de Velho Testamento, que Simone considerava, como Jeová, barbárie (opinião também do mais eminente marxista vivo, Geoffrey de Saint Croix). Minha opinião é que ela era orgulhosa demais para pertencer a qualquer grupo. Simone é meio cansativa, como todo moralista racional (o Alceste de "O Misantropo", de Molière, sempre me lembra Simone Weil), mas é indispensável ao conhecimento intelectual do nosso século e de suas opções.

Interessante que ao comprar este livro me deu saudade de alguns ensaios e livros de McLellan, especialista em Marx, autor de uma biografia e livros críticos que eram discutidíssimos nos anos 60 e 70. Perguntei ao livreiro quais tinha. Nenhum. Perguntei se podia encomendar. Fora do prelo. Lembro que quando cheguei a Nova York em 1971 havia livros sobre Marx saindo pelo ladrão. Hoje, quase nada.

Mas você, leitor amigo, pode remediar isso, já que está duro mesmo, comprando os melhores livros publicados pelas editoras brasileiras, que os há e excelentes. Elas tendem a desaparecer na recessão seguida de depressão que vem aí. Vale a pena salvá-las.

(FSP, 21/04/90) (*) Borges, Jorge Luís - Borges é uma esfinge sem segredos. Encarna tudo que o acadêmico típico acha supimpa: é arcano, irônico, reticente e ambivalente.

(FSP, 21/04/90) (*) Larkin, Fhilip - Larkin fez versos que entraram completamente para a língua, emblemáticos de uma geração. Não acho Larkin do nível dos meus poetas favoritos em inglês, que eram aristocratas individualistas, como Eliot e Pound, ou radicais manqués, como Auden, ou voluptuários, como Wallace Stevens. Larkin parece sempre irritado com o internacionalismo modernista, com alusoes clâssicas ou experimentalismo formal. Detestava a obscuridade e a dificuldade que os modernistas nos infligem. Escreveu: "Legibilidade é credibilidade". Mas é imortal.

(FSP, 28/04/90) (*) Concretismo - Baudelaire literalmente batoteou da vida dissoluta de Poe a concepção do "poeta maldito", poête maudit. Como Mallarmé, certamente um dos poetas mais influentes do modernismo, o que fascina em Poe é a técnica, o que Mallarmé chama de poésie pure, ou seja, a "poesia pura", a palavra pela palavra, com todas as relações da expressão poética e conteúdo sendo puramente gratuitas, sem interpenetração de sentido. Daí à demência compulsiva da "desconstrução", da conversão da poesia e literatura em "sinais", é um só passo, absurdo. Eliot é pela poesia impura, isto é pela relação entre a poesia e o vivido, por mais arcano que este seja. Não é à toa que irrita os pós-modernos, essa ralé, e é tão admirado pelos guardiães do modernismo. Por fim, Eliot vai a Valéry, que só interessa pela poética, não admite que poesia possa ter significado extraformal. Daí, claro, ao concretismo e à já citada filologia patológica, a distância é nenhuma.

(FSP, 03/05/90) (*) Carta - A carta sempre foi o mais sofisticado instrumento de comunicação dos seres humanos.

(FSP, 05/05/90) - Nova York - Mas Susan, esta semana, honra nosso Machado de Assis, num ensaio no "New Yorker", "Afterlives: the case of Machado de Assis". Susan o considera o maior escritor da América Latina, com Borges como segundo (como diria Philip Larkin, who is Jorge Luis Borges?). Susan diz que leu muito Machado em tradução e que não faz sentido que os cucarachas, da América hispânica, sejam condescendentes com os brasileiros, porque falam português. Waaal, a condescendência é recíproca. Estou longe de me babar por estrelas como Borges, ou García Márquez, prefiro Cortázar (apesar da derivação óbvia de Joyce) e Vargas Llosa, apesar de não lhe perdoar ter batoteado nosso melhor livro, "Os Sertões". Euclides da Cunha escreveu a obra-prima de nossa literatura, de que Susan, aparentemente, nunca ouviu falar. Chama-se em inglês "Revolt in the Backlands", e Robert Lowell disse à "Esquire" lamentar não ter tido tempo de aprender português, porque considerava "Os Sertões" melhor que "Guerra e Paz". Borges, diz Susan, nunca leu Machado, e "Memórias Póstumas" só foi traduzido para o espanhol nos anos 60...

É o único livro dele que ela parece ter lido, a fundo, e cita semelhança com Sterne ("Tristan Shandy"), mas Machado as menciona, ele próprio, num trecho transcrito por Susan, o mesmo Xavier de Maistre, com o que todo mundo leu "Memórias à Volta do meu Quarto". É Xavier, ou Josef, o grande reacionário, que se refugiou da Revolução Francesa, na Rússia? Isso explicaria o pessimismo de Machado, de Maistre, digo, que é de arrepiar os cabelos quando fala de que o "povo" vai fazer da civilização acumulada pelos séculos, em que os eruditos escreviam em latim (descobri um que falava português fluentemente, Spinoza, um dos meus filósofos favoritos. Mas não escreveu em português, infelizmente).

Português era originalmente um dialeto de Castilha e não é tão espantoso que seja uma língua agonizante, esquecida aos poucos pelo crioléu ex-colonizado da África, que voltará a seus dialetos; português sobrevive o quanto possível em Portugal, com escritores talentosos, e nas últimas no Brasil, onde ler qualquer jornal ou revista, com raras exceções, é penoso. Machado é um fenômeno.

Susan parece ignorar por completo o ensaio de um crítico bem mais famoso do que ela. Victor (V.S.) Pritchett, em "A Man of Letters", Random House, 305 págs., US$ 19,95, chamado "Machado de Assis, A Brazilian". Susan só cita "Memórias Póstumas" e "Dom Casmurro", prefere o primeiro ao segundo, mas Pritchett também leu "Esaú e Jacó", obras-primas como "A Missa do Almirante" e "Missa da Meia-Noite". Ninguém toca no livro mais bem-escrito de Machado, o mais bem-escrito em português, que é "O Memorial de Aires". Acho que Susan prefere "Memórias" porque é uma disquisição modelar de um homem, enquanto, pela atração dos opostos, prefiro "Dom Casmurro". Capitu é tão indelével como Madame Bovary. Não há um escritor dos EUA que tenha atingido a grandeza de Machado nas suas últimas obras. Poderia-se aqui abrir uma polêmica em favor de Henry James, mas eu o acho superestimado e intraduzível, não faz sucesso em língua alguma exceto inglês, ao passo que Machado fica bem em qualquer língua. Para encontrarmos rivais e superiores a Machado temos que ler os russos, alguns franceses e ingleses, estes do século 19 e Proust. É isso aí.

Mas o mistério supremo, que Susan e Victor desconhecem, é como o autor do soporífero "Helena" escreveu "Dom Casmurro" e "Memórias Póstumas". Se há alguma biografia crítica que explique, desconheço. Claro, se Machado fosse americano, sairia uma biografia "definitiva" sobre ele por ano, milhares de ensaios de todos os tipos. Imaginem, um mulato, casado com uma branca, que se fingia de branco, que "brownosed" alguém para ser funcionário público. Tenho até a quase certeza de que o veredito seria contra ele, pelas modas bocós da época do asno, que é como chamarei o advento de Lula. Afinal, Machado rejeitou sua cor e tinha 50 anos, diz Susan, quando foi proclamada a emancipação. Seu Machado, onde está o orgulho negro, o poder negro? É facílimo compará-lo a Flaubert ou a Turgenev (melhor do que). E ninguém mais europeizado do que Machado, sua obra é uma recusa só do que seria chamado Terceiro Mundo e suas tolices e pretensões. E, no entanto, é o nosso maior escritor com exceção de Euclides da Cunha, que é de primeiro time. E Euclides era também modernizador. Falando nisso, a bichinha, aquela, Almodóvar, disse que Gabriel García Márquez não é cinemático. Nunca tinha pensado nisso e agora que penso, concordo. Machado também não é, acho como Proust.

(FSP, 05/05/90) - EUA - Outro dia jantei com uma velha amiga, rica, bem-nascida, e que parece sempre jovem, linda e encantadora, e fiquei pensando no que Norman Mailer teve a coragem de escrever em 1968, em "The Armies of the Night", quando ainda pretendia, com muitas ressalvas, que aumentaram desde então, ser de esquerda; Mailer, talvez o leitor se lembre, quer fazer sua passeata contra o Pentágono, mas voltar a tempo de ir a uma festa onde vai encontrar mulheres bem-vestidas, lindas, venenosas, encantadoras, e que, claro, não vão discutir com ele sobre as infâncias que os EUA comentaram contra os vietnamitas. Nesse ínterim, epa, Mailer visita uma casa de liberais, isto é, gente de esquerda, e nota que mulher de esquerda é sem charme ou jaburu. Precisou um bocado de coragem para escrever isso, mas é a pura realidade. O feminismo foi uma saída maravilhosa para os jaburus. Os homens, alguns cúmplices porque são covardes ou não querem se chatear, ficam dando corda aos jaburus, ainda que pensem igualzinho a Mailer, em 1968. A vida é cruel.

(FSP, 05/05/90) - EUA - Há um livro muito erudito de Robert Schwartz sobre Machado, mas li-o e esqueci-o, como não esqueci Boswell sobre Johnson. Mas, como disse, é difícil para qualquer pessoa que queira ser conceituada pela "turrrma" intelectual escrever a sério sobre Machado de Assis. Ele é o antitabu. Um outro livro de que não me lembro o nome, de um certo Gledson, tinha interesse, mas era esquecível também. A biografia crítica do nosso maior, devo dizer o único? O que será que fazem esses cabras de USP e PUC, à parte copiarem orelhas de Barthes, Derrida, Levi-Strauss, e cantarem Lula-lá-lá, à cata do status de marajá? Quem não publica na academia americana, perece. Na brasileira, pelo visto, basta entrar e gozar até a morte de sombra e água fresca. Não temos uma ética de trabalho.

Encontrei outro dia numa livraria do Soho uma versão em paperback de "The Rise of the Novel", de Ian Watt, California Press, US$ 10,95, 319 págs. Foi publicado em 1957. É a obra sine qua non para conhecer como nasceu o romance moderno, nasceu de Defoe, Richardson e Fielding. Dois, primeiro e último, são muito conhecidos por "Robinson Crusoe" (Marx esbaldou-se, dizendo coisas brilhantes e erradas), e Fielding por "Tom Jones", de que ao menos se viu o filme (Fielding queria escrever teatro. A censura era tal que ele se voltou para o romance. Shaw diz que perdemos um segundo Shakespeare). "Clarissa", de Richardson, é um primor. Watt vai de Homero a Joyce, em linguagem acessível, sem o menor jargão. É o tipo de livro que quem entende de romance, se não leu, é mulher do padre.

Watt só escreveu um segundo, estudo que dizem definitivo sobre Josef Conrad, mas não consegui ler, porque Conrad é dose para "cheval".

Muita gente me escreve, à parte o cangaço sindical do Banco do Brasil e petelhos que pedem minha cabeça à Folha, com razão, porque se eu pudesse lhes cortaria a cabeça, metaforicamente, ao menos. Muita gente me escreve perguntando como se começa a ler. Watt é a chave do romance. Não há professor tão prestigiado, e o romance é uma invenção inglesa, os romances epistolares franceses não têm a dimensão social do inglês. Não é à toa que Marx ficou extasiado com "Robinson Crusoe".

(FSP, 10/05/90) - Nova York - Macróbio histórico - Estou lendo um livro chamado "Trotsky, Memoir & Critique", de Albert Glotzer, Prometheus Books, Buffalo, New York, 343 páginas. US$ 24,95. Comprei mais porque Glotzer, ex-trotsquista e hoje social-democrata, conheceu Trotsky pessoalmente, esteve como ele na Turquia, Paris e México. É tão raro, isso. Deustcher nunca o conheceu, por exemplo. Os comentários de Glotzer são coisa velha, se bem que ele enfatiza e documenta muito bem que Trotsky e Lênin foram adversários até julho de 1917, e justamente pela visão ditatorial que Lênin tinha do Partido e do socialismo, e Glotzer esculhamba Gorbatchev por continuar difamando Trotsky, enquanto canonizou Bukharin (há um outro artigo meu sobre esse senhor em Letras), cuja principal função foi ajudar Stalin a se livrar de Trotsky. Mas Vanja vai Vanja vem, como dizia Sérgio Porto, dei com o nome de Jay Lovestone, um dos mais famosos e influentes comunistas americanos, secretário-geral do PC, quando combateu Trotsky, mas caiu por simpatizar com Bukharin. Não é que o cara está vivo. Glotzer dá uma nota biográfica sobre ele, dizendo que nasceu em 1889, ou seja, tem 101 anos. George Abbot, o criador de "Guys and Dolls", tem 104 anos e vai fazer um novo musical! Depois de expulso do PC, Lovestone continuou radical, organizando sindicatos, como o pobre Lula, e, ao contrário do pobre Lula, é autor de vários livros, tais como o "O Dicionário Biográfico da Esquerda Americana", que devorei uns 25 anos atrás. Impressionante que nenhum órgão da mídia americana, agora que o comunismo está no fim, pense entrevistá-lo, ele que viu tudo, de John Reed ao outubro de 1917, às brigas infernais intramuros dos sucessores de Lênin etc. Mas, waaal, a ignorância é maior multinacional do mundo.

(FSP, 19/05/90) - URSS - Bukharin, o precursor do comunismo moderado. - Este livro, de Stephen E. Cohen, "Bukharin and the Bolshevik Revolution", de 1973, Editora Knopf [leia mais no texto abaixo], é o que se pode chamar de a biografia oficial de Bukharin. Na época, Trotsky, por força das eloqüentes biografias de Isaac Deutscher, ou os três profetas, como são conhecidos, dominavam o mercado de comunistas dissidentes. E Bukharin caía ainda pior, porque a esquerda radical estava fascinada com fenômenos passageiros, como Fidel Castro, e principalmente o maoísmo e a chamada "Grande Revolução Cultural". Bukharin, bem mais moderado do que Trotsky e Mao, não tinha "ibope", por assim dizer. Hoje, claro, a biografia de Cohen está desatualizada, porque Bukharin foi plenamente reabilitado por Gorbatchev, restaurado ao panteão comunista... Mas cabe a pergunta: quem quer saber hoje de comunismo, moderado ou radical? No Primeiro Mundo a idéia cessou de ter qualquer atrativo, no Segundo Mundo está em derrocada galopante, com Gorbatchev tendo claramente renunciado à herança de Lênin a não ser nominalmente, como no dólar americano, onde está escrito "Em Deus nós confiamos"... Mas no Terceiro Mundo ainda se discute comunismo a sério, em formas nativas como o petelhismo, logo uma olhada em quem foi e o que fez Bukharin vale a pena.

Cohen escreve de maneira clara e cativante. Não é um marxista, e não me parece dar muita importância ao jargão, mas é inteiramente simpático a Bukharin. Diz que ele foi o bolchevique mais importante dos velhos companheiros de Lênin, depois do próprio. É verdade, se considerando que Trotsky não era da facção bolchevique, só se aliando a Lênin formalmente em julho de 1917. Mas Lênin, no Testamento famoso, deixou claro que Trotsky era o homem mais capaz da liderança, apesar de gostar demais de soluções administrativas, palavras que, quando as li a primeira vez, inocentemente pensei que se referissem a esquematismos burocráticos, quando em realidade criticam o pendor de Trotsky por ilegalidades violentas. De Bukharin, Lênin é muito crítico. Depois de elogiá-lo como a pessoa mais estimada do grupo, diz que ele tem uma visão escatológica da historia e que não entendeu o materialismo dialético.

Acho que essas críticas se baseiam no excessivo entusiasmo, um entusiasmo religioso pelo socialismo, pois em pleno comunismo de guerra, Bukharin escreveu um livro dizendo que a URSS já tinha atingido o socialismo!, o que causou grande irritação a Lênin, que via a miséria do país, e Bukharin retirou o livro. Não há palavra sobre esse incidente na biografia de Cohen, mas é citado no excelente "O Experimento Soviético", de J. P. Nettl, historiador que, biógrafo insuperado de Rosa Luxemburg, morreu num desastre de avião com 39 anos de idade.

Grande parte do livro de Cohen é dedicado a demonstrar a sensatez de Bukharin em face do radicalismo de Trotksy e do burocratismo de Stalin. Bukharin tinha sido um radical em 1918. Chegou a pensar em prender Lênin quando esse propôs a chamada paz de Brest-Litovsk, que cedia enorme parcelas de território à Alemanha, na Primeira Guerra.

Mas depois da NEP, Nova Política Econômica, estabelecida por Lênin, em 1921, em que se permitia uma certa livre iniciativa no campo, enquanto as estatais permaneciam nas mãos do Estado, tornou-se um entusiasta dessa política, ficando famoso por um discurso que fez aos pequenos fazendeiros, "kulaks", em que dizia: "Enriquecei-vos".

Há bastantes indícios de que Lênin, depois dos sofrimentos horríveis de guerra, guerra civil e devastação do país entre 1917-1921, passou a acreditar que a União Soviética precisava de uma longa trégua na luta de classes, para se capitalizar internamente e atrair investimentos estrangeiros, por mais que isso doesse aos comunistas. E Bukharin parece ter sido um fiel arauto dessa política, ao contrário de Stalin, uma esfinge, e de Trotsky, pregando abertamente a revolução mundial e permanente.

Foi essa moderação de Bukharin, seu cuidado em defender "o" dos camponeses, e o cansaço geral da juventude bolchevique, depois dos últimos quatro anos, atraiu uma legião de comunistas para o campo de Bukharin, ao passo que o esquerdismo excessivo de Trotsky só interessava a um grupo de intelectuais, e os demais, Zinoviev e Kamenev, não tinham estatura para competir com Stalin e Trotsky. Foi assim que em 1927 Stalin, que já controlava a máquina do partido, mas não suas estrelas, atraiu Bukharin para um duunvirato que se livrou de vez de Zinoviev e Kamenev e terminou levando Trotsky ao exílio.

Cohen está certo em notar que esse duunvirato só foi possível graças ao grande prestígio de Bukharin, mas não só não é marxista como parece não conhecer bem Maquiavel, pois é óbvio que Stalin usou Bukharin simplesmente para livrar-se de Trotsky. Uma vez isso feito, adotou a maioria das posições esquerdistas de Trotsky, como a coletivização desastrosa de 1929-1932, mas colocou Bukharin em posições ridículas, tais como ser o principal redator da liberalérrima constituição soviética de 1936, jamais cumprida, e editar o "Pravda". Cohen cita inúmeras críticas esopianas de Bukharin a Stalin, nesses tempos, mas quem sabia do que estava se passando não precisava das criticas, e a massa seguiu Stalin numa minstura estranha de devoção e terror.

Bukharin morreu bem não só pela retórica brilhante, como por negar as acusações estúpidas de Vishinsky, o promotor. É voz corrente no meio bolchevique que só confessou para salvar a vida de sua jovem mulher, Larina, e filho bebê. E confessou generalidades. Nos tempos que Cohen escreveu o livro, Bukharin poderia ser usado, como foi pelo autor, como símbolo de um comunismo libertário e social-democrático. Mas Gorbatchev já foi tão além disso que o exemplo é supérfluo.

De suas obras, a mais conhecida é o "ABC do Comunismo". Impossível esquecer a observação de que um boiadeiro conta as vacas mas não as moscas sobre as vacas, uma aula singela de materialismo. Tudo que escreveu é simples e eficiente assim, e foi, como Cohen afirma, um dos primeiros a perceber que o Estado de transição entre capitalismo e socialismo poderia se tornar o pior tirano de todos, um Leviatã. Os brasileiros, que viveram sob o jugo de estados diversos, podem bem apreciar essa lição...

(FSP, 24/05/90) - EUA - Há livros que sei que não vou ler, mas de que gostaria de saber mais, e os jornais dominicais ingleses às vezes me prestam esse serviço, excertando (epa) os referidos, como "O Que Vi da Revolução", de Peggy Noonan, que esteve algumas semanas na lista de best-sellers do "Times", que é a única que conta aqui; os excertos estão saindo no "Sunday Telegraph" inglês. Peggy é tida como um gênio nos círculos republicanos suburbanos, que são, em verdade, o partido, porque o rico, apesar de votar republicano, prefere a companhia de democratas boêmios. É o careta que ganha entre 50 mil a 200 mil dólares por ano, religioso em graus variados de intensidade, que mora em núcleo residencial onde as hipotecas são para casas de 600 mil dólares, que tem dois carros, quatro ou cinco televisões, que é o republicano típico, entre 35 e 60 anos. Pelos adereços (hum) que eles usam nas convenções partidárias, caretismo é um eufemismo para descrevê-los.

Peggy, uma irlandesa bonitinha, parece uma "coleen", irlandesa que você só vê na Irlanda, com ar de criada em convento e, de uma maneira campesina, ligeiramente reluzente, que escreveu muitos dos discursos de Reagan, escreveu também o discurso em que Bush consolidou sua candidatura, batendo logo de saída Dukakis. As frases de Bush, que ele queria uma "América mais bondosa e gentil", e a de que previa "mil pontos de luz" sobre o país, lugares-comuns para intelectuais, e tolos, como é que um país pode ser mais bondoso e gentil? O que é um país? Waaal, mas pra republicano é do escambal. Peggy conta o que "viu" da "revolução", isto é, dos anos em que serviu a Reagan. É sagaz e escreve bem. Nota que é inconcebível um outro (Obs.: falta continuação).

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