quinta-feira, 3 de julho de 2008

carta III

Maura

Rio, 14 de outubro de 1967

Vera,

Hoje é sábado.

Resolvi continuar a carta para me comunicar com você. Estou muito sozinha, triste, infeliz e com fome. Amanheci me sentindo tão mal, minhas pernas doíam tanto! Permaneci na cama até uma hora. Tive a desgraça de ler um conto lindo de Ray Bradbury, “O próximo na fila”, muito depressivo, e caí na maior fossa. Também, nunca pensei que responsabilidade fosse coisa tão penosa e exigisse esta vigilância, esta constância, esta capacidade para continuar lutando e querendo – quando o terreno anula qualquer luta e os adversários nos desprezam completamente, nem ao menos tocando em armas, mas sorrindo levemente e nos dando as costas. Porque assim tem sido minha luta: contra o quê? Quem? Onde estava o Alto Tribunal? Onde estava o juiz que nunca tinha visto?

Não pode existir vida mais kafkiana do que a minha.

Todos me negam. Mas, por que me negam, se nem ao menos me conhecem, ou eu os conheço?

Veja: estou louca para trabalhar. Escrevo bem e todos sabem. Sou mais capaz do que a maioria das pessoas que conheço. Aos ser apresentado a alguém, este alguém me diz: “Li seu livro muitas vezes. É de grande importância. É maravilhoso. É seríssimo”.

É tanta coisa que já nem sei. Outros falam, dos contos, a mesma coisa. A filha do José Luiz do Rego, disse-me: “Um amigo meu leu seu livro sete vezes”.

Entretanto, Gilda, a mais medíocre e vulgar criatura do mundo, está na Europa por conta da revista Realidade, fazendo reportagem. Li uma reportagem dela nesta mesma revista, uma droga. Eu faria mil vezes melhor, estou certa. Eu que não durmo pensando em como fazer para entrar para um curso de inglês, ou francês audi-visual, pensando onde encontrar, no dia seguinte, alguém que me dê o dinheiro da refeição, condução e cigarros, que não escrevo porque tenho a minha máquina empenhada, não trabalho porque não me deixam. É neste desgaste que se exaurem minhas energias.

Ando tão cansada, Vera, tão fraca. Tenho medo de cair doente e não poder mais nem procurar emprego. Talvez não esteja habituada a andar e pensar tanto. Talvez não tenha mesmo muita resistência física - ou esteja cansada com razão – ou as preocupações sejam grandes demais. Eu não creio que me fosse impossível trabalhar o dia todo, sabendo que o meu sustento estava garantido e me restasse algum tempo e condição para meu trabalho de criação. Mas o tempo se escoa por entre meus dedos, nada realizo e me frustro cada vez mais: preciso passar meu Diário a limpo, começar um romance, ( tenho todo em gestação), estudar línguas, tentar uma bolsa de estudos na Europa. Todos vão, por que eu não?

Você vai perdoar-me estas lamentações, este desabafo, esta transferência de problemas. Mas quem, a não ser você, me ouviria? Ninguém me quer bem, Vera. Todos me usam. E usaram. É incrível que eu nada consiga no Ministério, com tantos pistolões. Mas não vou conseguir, esteja certa. Encontrei lá um oligofrênico – epilético – imbecil, primo do Ministro. Está no gabinete, diz-se meu amigo. É analfabeto, sei que vai fazer milhões de fofocas (como fez a Glorinha), estou mais deprimida por isto. Mas, chega de choradeira.

Você falou com o Edson? Acho melhor não lhe escrever mais, hoje.Você vai achar-me dissociada, esquizofrênica, etc. Além de eu correr o risco de fazê-la cansar-se de mim.

Domingo

Hoje estou melhor. Passei o dia em casa de dois amigos meus: Adauto e Mario Rola. Esqueci-me de que são meus amigos, tomo refeições lá. Falei tanto em você. Li a sua última carta para eles. São jornalistas, os dois. Parece-me que estão dispostos a abrir um pequeno crediário numa casa de modas. Comecei a fazer uma coleta entre os conhecidos. Você pode contribuir com quinze mil cruzeiros. Sei que é horrível pedir-lhe isto, mas é mais horrível pedir a outras pessoas, e tenho feito. Não tenho mais calças nem soutien.

Fui ao Teatro, Nataniel, que me acompanhava, durante o intervalo chamou a Tônia Carrero, que se achava perto de nós, e apresentou-nos: “Tônia, esta é a Maura Lopes Cançado”. Ela tirou-me uma linhada, de cima para baixo, sorriu muito constrangida, mostrou-se tão horrorizada como se alguém lhe tivesse apresentando o Gaguinho. Eu não me incomodei, em absoluto. Olhava-a muito intrigada, pois naquele mesmo dia vira uns retratos dela numa revista velha, aqui no hotel, e sua metamorfose parecia-me escandalosa. Como é mais bonita e jovem depois de seis anos? Que milagre de cirurgia conseguiu esticar-lhe tanto a pele, tornar seus olhos oblíquos, anular os vincos que, antes, lhe marcavam a face, junto ao nariz? Pelo visto, ela chegaria à infância, muito breve. Eu estava tão maravilhada que nem me deixei atingir quando ela, sem uma palavra, me virou as costas e se pôs a falar com um homem alto, simpático, um tal César, seu marido. Lembrei-me de Simone de Beauvoir, no seu livro “A convidada”. Ela diz, olhando certas atrizes de mais de quarenta e cinco anos, perfeitamente conservadas, como carne velha nos frigoríficos, “... esta juventude não tinha a frescura das coisas vivas, era uma juventude embalsamada. Via-se que aqueles corpos envelheciam por dentro”.

Dias atrás esta estrela mandara dizer-me, pela Luiza Barreto Leite, que fosse apanhar umas roupas em sua casa. Fui recebida no portão, pela empregada. Entregou-me uma trouxa de roupas do século dezenove. Naturalmente a estrela considerou uma ofensa ser apresentada a alguém que recebe roupas velhas nos portões. De qualquer maneira, não é pela Tônia, preciso comprar dois vestidos, uma bolsa, etc.

Aconteceu, agora, Vera, uma coisa que eu chamaria de horrível, não fora estar preparada para tudo.

É muito chocante para ser contado em carta. De qualquer maneira, serve como experiência.

Mais uma, mais uma, mais uma. Quando aprenderei a lidar com as pessoas? Quando serei capaz de me defender da humanidade? Eu chego a pensar que tenho qualquer coisa de santa. Lembra-se de “Noites de Gabíria?.

Um grande, grande, grande abraço.

Maura

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