quinta-feira, 3 de julho de 2008

Carta de Maura Lopes Cançado


Rio, 20 de agosto de 1967

Vera, querida:


Recebi as roupas. Gostei muito. É uma grande alívio a gente poder sair sem, antes, ter passado quase toda a noite em claro se indagando: “ Como vai ser? Eu não tenho um trapo”. Os seus vestidos serviram-me, perfeitamente. Os sapatos, também. Pode mandar quantos você queira que me farão muito feliz. Quanto ao costume que a sua amiga mandou, é lindo. Adorei-o. Principalmente a cor. A saia está muito larga, terei de procurar uma costureira bem micha, que não se ofenda em fazer consertos, para apertá-la. O pior, o mais trágico, mais dramático, é que ninguém se considera micha. Nem ao menos pouco brilhante. Todo mundo é sublime. As costureiras, ainda as que apenas sabem movimentar a máquina com certa precisão julgam-se rivais fortíssimas de Mary Quant e Pacco Rabanne. Isto me faz lembrar Fernando Pessoa: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo”.

Arre, estou farta de semideuses!

Onde é que existe gente no mundo?

Mas a moça foi muito gentil. Dê-lhe um abraço por mim. Esta gentileza, entretanto, não impediu nascer em minha angustiada pessoa um terrível drama de consciência: olho o costume a todo o instante, quero, devo vesti-lo mas, como? –se a saia cabe duas Mauras? E me considero a última das criaturas. Nunca serei capaz de ajudar nem a mim mesma. Sou um zero. Qualquer criadinha já teria desfilado com o costume. Ela saberia o que e como fazer. Eu, não. Principalmente minhas mãos, parecem de todo inúteis.

Mas a propósito de consertos de roupas, já estou quase me habituando a esta situação aflitiva, como um modus vivendi: tenho mais alguns vestidos, dados por uma namorada de um médico, meu amigo. Que catástrofe! A moça é enorme, o dobro de mim. Os vestidos estão aqui há um mês (não são grandes coisas, mas servem), e só serviram, até hoje, para me atormentar, criando-me os maiores complexos de inferioridade. Eu, além de não ser alta como desejava, sou incapaz de reparar qualquer coisa. Não sei se por mazoquismo ( ou acreditando num milagre qualquer), tirei-os do armário e deixei-os expostos sobre uma mala. A cada instante contemplo o pequeno monte, instrumento de suplício, mais sério do que na “Colonial Penal”, de Kafka, eu acho. A mala fica em frente à minha cama, é a primeira coisa que vejo, ao despertar. Por aí você pode fazer uma idéia. A este monte, que fala mais alto à minha covarde e escura consciência do que todos os analistas juntos, juntei o belo costume que sua amiga me mandou. E entrei num estado total de depressão. Para sair dele eu teria, talvez, de aprender a costurar. Mas como me deixei afundar, sem nenhuma esperança, não poderia sequer pagar as aulas de costura.

Você julga que estou brincando? Juro ser tudo verdade, Vera. Antes de deixar a análise, a doutora Kate ( aquela gringa), ouvindo-me falar do que me desagradava, quase me levando ao suicídio, mas que eu não tinha iniciativa nem coragem para deixar, o hospício, por exemplo, disse-me:

“Vi um quadro num museu da Europa que mostrava um grande escritor trabalhando. Ele estava deitado em seu leito, coberto até o pescoço por vários cobertores, um chapéu enfiado até os olhos e um guarda-chuva aberto sobre si, enquanto escrevia”. Por quê?- perguntei, me divertindo.

“Porque chovia dentro de sua casa. Dizem que ele deixou uma obra, foi um grande escritor. Esqueci seu nome, mas é muito famoso”.

Tive um ataque de riso. Ela falava tão sério! Perguntei-lhe: “Por quê ele não se mudava?”. “Porque não tinha dinheiro”, respondeu. “Por quê não consertava o teto?”.

Ela: “Você consertaria? Não sei (continuou) mas, ouvindo você falar, visualizei o quadro perfeitamente, como se o tivesse vendo. Parece até alucinação”.

“A senhora achou-o muito divertido, quando o viu?”, perguntei, ainda. Respondeu-me:

“Não me interessou muito porque eu ainda não conhecia a Maura. Mas agora entendo exatamente aquele escritor. Era como você: deixa estar para ver como fica”.

Tive um ataque de riso. Ri mais de dez minutos deitada naquele sofá chato. Devo ter rido por defesa, eu creio.

As coisas mais simples conseguem levar-me à sensação total de derrota. Estes vestidos, por exemplo: pensando neles, ou vendo-os, entro num desespero tão grande como se me encontrasse literalmente nua. Não tenho utilidade, Vera. Como pode existir pessoa tão incapaz de viver, como eu? Escrevi um conto, não sei se você o leu (saiu publicado no Correio da Manhã), “Colisão ou Espelho Morto”. Nele eu consigo falar de minha visão do mundo e na dificuldade em nele existir. É para mim meu melhor conto. Há uma passagem em que falo de minha companheira de quarto, estudante de geologia. Ela joga pedras sobre minha cama, pedras colhidas por ela, diariamente, nas praias. Estas pedras já me tomavam a metade do leito,

“pedras personalíssimas, quase vivas, que já me tomam a metade do leito. Encolho-me sob os cobertores, as pedras ocupando sempre mais espaço, sentindo-me impossibilitada de argumentar com as pedras, eu que sou destituída de qualquer senso de organização, mesmo iniciativa”.

Inconscientemente confessei que considero qualquer ser, mesmo inanimado, com mais personalidade do que eu. E capaz de me subjugar, até com argumentos. Pois se não acredito nem ao menos em minha identidade. Sonho sempre: depois de muitas confusões, onde não consigo me comunicar com ninguém, e tudo, as pessoas, as circunstâncias, até os objetos me apavoram, procuro salvar-me provando a alguém (quase sempre a meu médico), que sou Maura Lopes Cançado, a que escreveu “Hospício é Deus”, ou fez outra cretinice parecida. Não me acreditam. Procuro meus documentos, não os encontro, as pessoas riem e debocham de mim. Não vou contar-lhe um desses sonhos porque são todos longos – mas alguns estão no diário 2. A doutora Kate insistia sempre comigo: “Você perdeu desde quando a sua identidade?”

Há outro sonho terrível: eu me vejo a mim mesma, muito bonita e cercada por pessoas. Estou saindo de uma escola de teatro. Mas entre mim e eu, há uma parede de vidro. Vejo-me de perfil. Sou loura, bonita e uso casaco de lã bem largo. Súbito, viro-me em minha direção. E me vejo feia, horrível. Sinto-me angustiada, quero falar-me, mas eu não me vejo e desço uma rua, inteiramente indiferente e ignorando minha presença do outro lado da parede. Então, desço também, gritando-me, gritando-me: “Você precisa fazer uma operação plástica”. Mas não me posso ouvir, há uma parede de vidros muito grossos. Acordo suando, é terrível.

A doutora me disse, certa vez: “ Uma das coisas que mais me impressionou em você foi este sonho em que você se vê, mas há uma parede separando-a de si mesma. É, sem dúvida, um sonho de esquizofrênico”.

Ô, Vera, perdoe-me contar-lhe tudo isto. Mas eu morro, se não falar com alguém. Eu estou tão sozinha, tão desesperada, tenho tanto medo de mim mesma. Porque não sei até onde sou capaz de destruir-me. O pior é que não ouso muito. O Wassilly me disse uma vez: “Você não assume compromisso nem com a loucura. Nunca ficará louca. Seria comprometer-se”.

Creio ser verdade. Se estou no hospício, me comporto como sã; se estou fora, esquizofrenizo-me.

Quanto à questão de iniciativa, você está vendo como, inconscientemente, acredito que até mesmo uma pedra a tenha mais do que eu? ( Isto me passara despercebido. Só agora, lendo o conto, dei-me conta). Mando-lhe o conto. Peço-lhe que mo devolva. Ao escrevê-lo, eu morava no Flamengo, em casa das “três horrendas criaturas”. A geóloga era, na verdade, uma estudante de odontologia oligofrênica e, apesar disso, me intimidava como se tivesse descoberto a lei da gravidade. O quarto era meu, mas resolvi, por medida de economia, dividi-lo com outra. A mulherzinha se instalou lá, sentiu-se logo a dona, pressionou-me tanto que eu me mudei – calada e revoltada. Até hoje o Stenka não conseguiu entender como sou indefesa a este ponto. A do bigode era lésbica. Inofensiva, amante de uma professora de violão, de Belo Horizonte, uma tal de Maria Tereza. O “ser que desconheço” é o Stenko. Ele nunca me pôde perdoar esta lealdade. Imagina que eu estava sem máquina, pedi-lhe que o batesse no jornal para mim. O Wassilly gostou muito, disse que me retratava fielmente. Não o entendi bem, na época. Hoje o entendo. E hoje entendo também a minha imensa solidão e sinto uma grande pena de mim. E me pergunto quando foi quebrada qualquer coisa que tornou a minha vida tão à margem, sempre, tão destituída do sentido normal que têm as outras vidas. É como se eu não encontrasse meios para viver a minha vida. Ou será mesmo, este equívoco, a única coisa que me foi dada?

Mas isto tudo já está enchendo. Mudemos de assunto. Afinal, você não é analista. Mas é, talvez, a única pessoa realmente minha amiga, me indago como se pode ser como você, Vera: tão boa, tão honesta em suas intenções, tão pouco egoísta. Eu não sei fazer elogios, sou seca, mal educada e, principalmente, sinto vergonha em exteriorizar meus sentimentos. A doutora fez todo o possível para provar-me seu afeto. E só conseguiu que eu a achasse estúpida, mal intencionada, egoísta, incompetente. Repeti-lhe muitas vezes: “A senhora carece de humildade – além de ser inculta e pouco inteligente. Não reconhece que sou muitíssimo mais do que a senhora e que devia estar sendo paga para ser analisada, em vez de pagar-lhe?”.

Entretanto, ela me assegurava que a análise comigo era muito produtiva por causa de minha franqueza e coragem. Se tínhamos uma má relação, era uma relação. E, mazoquisticamente, aceitava de mãos abertas todas as minhas agressões. Fora disto eu não sei me relacionar. Não. Há três maneiras: sexualisando a relação, agredindo ou escrevendo. Fora disto é tudo mentira o que digo.

O Cesarion não sabe é que ao dizer-lhe: “Eu não gosto de você”, estou dizendo justamente o contrário. Gosto de você mas me sinto rejeitada, por isto te detesto. Mas não é ódio, Vera. É exatamente o contrário. Você entende, não? Sei que você entende. Voltei a falar de meus problemas, desculpe-me. É que sou de fato egoísta mas, sobretudo confio muito em você. É em quem mais eu confio e talvez isto queira dizer: Só confio em você.

Eu, sem dúvida, não quero trabalhar. Ou: Eu, sem dúvida, quero trabalhar. A ambivalência é a principal característica do neurótico e o que mais gera conflitos. É como sentir assim: quero correr, com uma força incrível e, ao mesmo tempo: quero ficar inerte, também com uma força incrível. Você já pensou a situação de um desgraçado deste? Pois sou uma desgraçada. Mas, agora, o instinto da vida, em mim, está mais aguçado. E, de certa forma, me sinto comprometida com você e o Cesarion. Devo trabalhar porque, afinal de contas, alguém acredita em mim. Se não sou capaz de acreditar, outros são. E esses outros são vocês dois. Ô Vera, eu gostaria tanto de fazer feliz o Cesarion! Mas gostaria tanto, mesmo. Você viu a peça de Arthur Müller “Depois da queda?”. A moça neurótica diz para seu marido: “ Eu queria ser maravilhosa para você sentir orgulho de mim”.

Nunca me esqueço disto. Porque eu também queria.

Você já sabe que vamos nos mudar? É lastimável e eu me considero tão culpada. Deu tudo errado, você sabe. Estou sem um dente na frente, vou colocá-lo amanhã. Logo depois tratarei de providenciar tudo, inclusive o estágio na Jóia. Mas como me considero burra, inculta, insegura, incapaz, você acha que poderei fazer alguma coisa?

Quanto à temporada de seus parentes aí, imagino o que tenha sido. Já percebeu que todos os nossas parentes, ou são burros, ou são loucos? Muitos se queixam disto. Eu, então... Mas você é forte e possui bom mecanismo de defesa. Eu é que me deixo sempre envolver. Quando fui a Belo Horizonte agora, encontrei minha família tão enrolada que, ao dar por mim, estava diariamente freqüentando a delegacia de Roubos e Furtos, na melhor conversa com um comissário metido a conquistador, para livrar a cara de um dos meus cunhados – muito naturalmente – foragido. Pretendo não voltar lá, nunca mais! Mas veja você como os mineiros são vivos: tão logo me viram, usaram-me. E a idiota foi envolvida direitinho!

Vera, por incrível que pareça tenho ainda milhões de coisas a dizer-lhe. Continuarei a carta, depois. Hoje estou doente, tenho um pouco de febre. Apareceu-me uma bolha imensa na coxa ( de vez em quando isto me acontece), fui ao médico do IPASE. Ele perguntou-me se durmo bem, respondi que não. Se tenho vida sexual regular, respondi-lhe que não tenho atualmente nenhuma vida sexual. “Então está explicado – respondeu-me – seu mal é de fundo psicológico. Aliás, esta manifestação é freqüente nas virgens. Por quê você não tem vida sexual?”. “Porque não tenho amante”, respondi. “Mas não pode arranjar?” “Bem, o problema não é assim tão simples”.

Ele falou durante uma hora, parece inteligente e sabe o que diz. Mas a verdade é que eu não sei como resolver, pelo menos por enquanto, o problema.

Um grande, grande abraço para você.

Maura

Um comentário:

Anônimo disse...

Meu email edivaldorafael@yahoo.com, estou realizando um projeto de artigo sobre a Maura Lopes Cançado, gostaria de saber se você tem algum materia.