quarta-feira, 11 de junho de 2008

Para ser um escritor fofo (receitinha)

Por Marcelo Mirisola

Dei uma remexida nos meus arquivos, e achei essa “Receita para ser um escritor fofo”. Li, reli, acrescentei um bocado de maldades, e resolvi publicá-la aqui no Congresso em Foco. Ocorre que Santiago Nazarian escreveu uma resenha sobre meu “Notas da Arrebentação”. Entre outras coisas, disse que eu era “Pop”. Isso foi em 2005. O tempo passa, e rápido. A “Receita...” que vos sirvo hoje, era para ser publicada no jornal Folha de São Paulo em forma de réplica. À época, o editor da Ilustrada, Cássio Starling Carlos, me enrolou; ficou o dito pelo desdito, e a receita não foi publicada. Lembro que o ilustrado editor pretextou dizendo que eu havia ultrapassado o “número de toques”, e que havia sido “pessoal”. Ou seja: a resenha que o Santiago Nazarian havia escrito, com aquele monte de bobagens, era menor que minha réplica. Concordo, menor em todos os sentidos – inclusive no “número de toques”. Quanto ao fato de negar minha resposta alegando que eu havia sido “pessoal”, bem, o que ele queria? Que eu desse um corretivo no jovem Nazarian, na rua? Que eu fosse reclamar na Luciana Gimenez? Nesse caso, eu justificaria o diagnóstico de Nazarian, e não seria apenas Pop, mas Super Pop. Hoje até acho que o Santiago é um cara legal (isso não tem nada a ver com as coisas que ele escreve)... e, tirando o nome de uma boate que abriu e outra que fechou, minha “Receitinha...” conserva-se 100% intacta. Al dente.

Vejam só, caros leitores, o quão nociva pode ser a decisão de um editor ilustrado. Perdemos, eu que passei por “Pop”, e o Nazarian, que não teve a oportunidade de treplicar minha receita, mas sobretudo perdeu o leitor da Folha, que poderia ter dado boas risadas,e refletido sobre a questão. Até hoje, não acredito que o “número de toques” tenha sido a base da recusa do ilustrado editor. Para mim, ele se identificou profundamente com os fofos, e – óbvio - não contava com o meu arquivo e nem com a minha astúcia, e muito menos com minha coluna aqui no Congresso em Foco, três anos depois.

À receita, portanto.

Receita para ser um escritor fofo:

1. Sexo indefinido, de preferência Pan. Isso inclui chiuhahuas, lobisomens panamenhos, videntes e, de repente, até o Ney Latorraca - qualquer coisa, menos homem com mulher. Por excentricidade, até que é legal o fofo(a) correr um risco de ser bissexual, contanto que não se empolgue com o papai e mamãe – é pra ser “fofo” não é pra ser subversivo! Porque esse "horror hétero", além de "causar gente", é kitsch e, também, pode ser associado às igrejas neo-pentecostais ou ao novo Papa. Essas tribos não são fofas, cuidado. Por essas e outras, que Érika Palomino é clubber, e também escreve livros, portanto é fofa e é “escritora”, e todo fofo(a) devia querer ser como ela...

2. O escritor(a) fofo (a) não precisa derreter os miolos ou fiar-se naquela antiga e ultrapassada capacidade cognitiva da razão, depois que inventaram o "insight", o fofo(a) tem a obrigação de ter um blogue (de preferência com fundo de oncinha); esse tal de “insight” facilitou muito a vida dos manés, digo, fofos, hoje em dia qualquer um pode ter “insights” e se dependurar em ganchos, misturar alhos com bugalhos, fazer suas interpretações místicas e dispensar uma coisa para chegar à outra, equivale a dizer: chegar na “Loca” ... ou a lugar nenhum: o que é absolutamente a mesma coisa – desde que não descuide jamais daquele blaiser de oncinha que comprou num brechó da Vila Madalena.

3. O endereço do fofo(a) é muito importante. Pra ser fofo tem que morar em São Paulo. Em primeiro lugar, Vila Madalena. Depois, rua Augusta e adjacências... isso inclui centrão, Copan e Santa Cecília. Agora, se o fofo que é citado nos saraus de Higienópolis, quiser morar na periferia, vai ganhar um bônus: nesse caso, além de vender bonés e camisetas, pode fazer cara feia, e posar de ma-cho... também é “bacana” co-assinar roteiros de filmes “ER” (“ER” de eterna retomada), e ter um réptil em casa; serpentes e lagartos albinos estão na moda. Esses seres adoram samba de raiz, e ambientes lounge, tipo Ódoborogodó. Olheiras profundas e pálpebras caídas são recomendáveis, e necessariamente o fofo deve ter muitos quilômetros de noites viradas em claro, aí é “bacana” morar nas imediações da rua Augusta: sempre vai ter uma boate aberta até às dez horas da manhã, e um pão chapado na padaria da esquina, que é a cara do fofo ...

4. Digamos que, além de se auto-mutilar,você é enfadonhamente gay, e morou com um druída na Islândia, no fundo é tudo a mesma coisa: o que vale é a performance e o jogo de cena, se bobear ganha uma bolsa da Petrobrás, e aí é que nunca mais vai precisar fingir que é amiguinho do traficante... exija qualidade somente da droga que você consome, o resto é fornecedor, digo, contato.

5. Um dicionário uóóóó com termos usados por travestis é imprescindível. Você ainda não tem uma amiga traveca?

6.. Se você, fofo(a), não conhece o Xico Sá, pare por aqui. Até eu, que sou um tiozinho que dorme às nove da noite, o conheço. O Xico bordeja acima do bem e do mal, e se você realmente é um fofo(a), deve obrigatoriamente ter frequentado o Xico Sá; seja no balcão de um bar improvável no Largo do Paissandu, seja na cama de um hotel duas estrelas na Peixoto Gomide ou, sei lá, seja nas gerais do Ulrico Mursa ... você não sabe onde fica o Estádio da Portuguesa Santista? Informe-se, e peça o telefone do Xico Sá para uma amiga sua, se ela não souber, considere-se desde já um off-fofo.

7. No mínimo você tem que ter dez tatuagens bem visíveis. Todavia essas tatuagens jamais poderão aparecer mais do que você. Seja arrogante. Ao contrário do que parece, fofura e arrogância são irmãs siamesas. Se quiser, o fofo(a) pode tatuar poemas do Arnaldo Antunes no antebraço, ou tatuar listinhas de supermercado na bunda - mas é fundamental que as reproduza (e ao próprio corpo,principalmente a bunda) em público: para platéias que queiram aplacar suas conscienciazinhas pesadas em lugares culturais, tipo Itaú(12% ao mês) e afins. Sucesso garantido em Paraty. Um dia, o fofo(a) vai dividir a caneca com o Jô,e o gordo vai se dirigir a ele(a) na primeira pessoa do plural, “nós escritores”. Capricha no inglês, fofo (a), e capricha nas citações de bandinhas norueguesas, e não se esqueça de revelar autores obscuros. Se a iguana que está fazendo sexo com você ficar de fora, nem você, e nem ela, desfrutarão da condição de gênios e de fofos, e o Jô não vai perdoá-los por essa falha. Lembre-se: falta de talento passa, mas falta de oportunismo e falta de vaidade são crimes fatais para o candidato a escritor fofo: se for o caso, leve uma cola; você pode, você é fofo, logo tem liberdade para fazer o tipo, “cheguei da balada agora, falou comigo?” Quando for citar as bandinhas norueguesas - porque você, além de escritor(a), também é vocalista de uma banda fofa – não descuide da pronúncia, que deve ser tão impecável quanto o desconhecimento no inglês,e nos idiomas que você enrola, é isso,afinal de contas, que faz de você, e da iguana que o ajuda no aluguel, seres fofos e ... iconoclastas.

8. Essa palavra é mágica! O fofo(a) é iconoclasta acima de qualquer coisa. Se conseguir – acho muito difícil... – tente ser mais iconoclasta do que arrogante. Deve ter um ideograma japonês para “ iconoclasta”: se ainda sobrar um lugar no seu corpo, nem que seja na testa, estampe o ideograma imediatamente. Se lhe perguntarem o que significa, responda com aquela sua cara de enfado e inteligência, que só você sabe fazer: cara de iconoclasta com sobrancelhas arqueadas. Você vai arrasar!

9. Não precisa ser ecológico, mas é “bacana” ser Pró. Pró qualquer coisa,pró aborto, pró-maconha, pró ativo, ou pró passivo, tanto faz. Nada de ter opinião própria e ser ostensivamente a favor disso ou daquilo, você é Pró e basta – essa postura Pró vai ajudá-lo(a) a conquistar a simpatia da hostess do Vegas, que se não for um ácaro, deve ser necessariamente pró e provavelmente um réptil, e decerto irá reconhecê-lo(a) como um igual, e vai liberar sua entrada.

10. Importante demonstrar que você é blasé,e fingir que não está na fissura 24 horas por dia (tirando o traficante, ninguém vai perceber). Faça o tipo distraído, finja que é um peso estar novamente no programa do Jô; ele também é um hostess e vai saber reconhecer um igual, e uma iguana. Paradas e passeatas são coisas diferentes. Não me queira mal. Às vezes é conveniente cometer uns trocadilhos,e umas rimas infames: o ideal seria cometer rimas e trocadilhos simultaneamente,será que você é capaz? Dessa forma, você vai conseguir circular entre os manos do jardim Ângela, e abrir portas na USP, nunca se esqueça: proficiência e erudição andam de mãos dadas. Só treinar.

11. Onde você colocou aquele blaiser de oncinha? Não esqueça de combiná-lo com o coturno pink,e o cachecol inglês(para dar um ar de sobriedade)... os velhinhos da academia podem estar de olho, nunca se sabe.

12. Se você, fofo, for tátil e sensorial, bom de "cheiros" e de trago, e tiver um namorado que é garçom na Vila Madalena, melhor ainda. Arrume um apelido engraçado para esse garçom: algo que remeta a servidão e fofura: que tal, Chocotone? Também é “bacana” ter um livro infantil no currículo. Interessante publicar em revistas literárias com projetos gráficos arrojados. O fofo tem que "sujar as mãos" e caprichar nos pitis em forma de resenha (os ilustrados da Folha,e as revistas literárias adoram!), contanto que consiga disfarçá-los. É “super-bacana” que se preocupe com o layout de seus livros,e se for o caso, você fofo(a) pode amputar a falange do mindinho, e sangrar na própria capa. Isso é muito chique.

13. O principal é não escrever nada que valha a pena ser lido, nunca, jamais. Esqueça Dostoiévski. Seus contemporâneos (não me inclua nisso,por favor) e as Iguanas albinas lhe bastam. Cadê sua boina à Guevara,fofo?

14. Outra coisa. Tem que participar de workshops e oficinas literárias. Existem profissionais qualificados no ramo. Gente séria que organiza antologias e escreve de graça em jornais importantíssimos do Paraná. Para ser um escritor(a) fofo(a) nos dias de hoje, tem que conhecer uns pistolões e matadores - o que não é muito difícil. Eles dão canja na Mercearia São Pedro. Você ainda não foi à Mercearia São Pedro? O melhor sanduíche de carne assada da cidade. Ainda não foi? Não? Então vá! Os mesmos fofos que dão workshops e oficinas literárias, e que se sodomizam em confrarias patrocinadas por grandes bancos, lançam livros geniais toda semana na Mercearia São Pedro. Vai lá, fofo(a) – não esqueça de fazer cara de mau; em seguida, providencie uma mandinga para me derrubar, fura meus olhos! Mas deixa o Marquinhos atrás do balcão, e fora disso, tá bom?

15. Agora, chique mesmo, é lançar livro na Casa do Saber, junto com a mamãe. E, se além de chique, você quiser desfrutar de uma experiência mais radical, e tiver a fim de se dependurar em ganchos, e aparecer em todo canto posando de princesa da Nova Geração, procure o Chocotone - as purpurinas estarão garantidas. Um mundo fashion de prêmios literários, e festas do cabide se abrirá ... mas lembre-se de que você não pode escrever nada "cerebral", e, de cerebral, tenha em “mente” apenas isso: "Um dia ainda vou sentar no sofá da Hebe". Mas não conta pra ninguém. E não vai aceitar o convite, claro.

16. Ultima dica. Se lhe convidarem para escrever mais uma resenha sobre meus livros, é conveniente lê-los antes, e esquecer o sofá da Hebe por meia horinha. Faça esse esforço. Caso contrário, posso dedicar outro chamego-resposta a você, fofo(a).

17. O novo Papa não é pop, e nem eu.

(texto originalmente publicado no site Congresso em Foco)

Marcelo Mirisola nasceu em 1966, em São Paulo (SP). É formado em Direito e considerado o mais iconoclasta dos escritores da nova geração de prosadores. Tem os seguintes livros publicados: Fátima fez os pés para mostrar na choperia (1998); O herói devolvido (2000); O azul do filho morto (2000); Bangalô (2003); O Banquete (textos a partir de imagens de Caco Galhardo, 2003); Notas de arrebentação (2005); Joana a contragosto (2005); O homem da quitinete de marfim (2007). Escreve, semanalmente, no site Congresso em Foco, http://congressoemfoco.ig.com.br/ E-mail: marcelomirisola@yahoo.com.br

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