sábado, 14 de junho de 2008

O Azul do Filho Morto: Um Romance de Deformação

11/02/2004 - 23:24 (Márcio Scheel)

As discussões em torno da História da Literatura, da historiografia literária que estabelece, determina e justifica o cânone literário, concebido a partir de um conjunto especifico de obras sobre as quais se volta um conjunto de valores que prefixam a validade e a resistência, no tempo, dessas mesmas obras, é rica também pelas controvérsias que desperta, pelos autores que exclui em detrimento de outros que, teoricamente, representam não só os valores ideais da estética, valores que se ligam intimamente às condições particulares das obras produzidas, mas também os valores sócio-político-culturais que seriam ilustrativos de um determinado pensamento elitista, próprio das camadas dominantes de uma sociedade burguesa, branca e heterossexual. Os chamados estudos culturais, nos dias de hoje, procuram, por caminhos tão controversos quanto os da historiografia literária, resgatar a legitimidade de pensamento das minorias excluídas.

A despeito do cânone estabelecido pela historiografia literária “oficial” ou das proposições revisionistas dos estudos culturais, o fato é que a história da literatura, por si mesma, cria um universo de autores e obras que, por suas posições, escolhas estéticas, ideológicas ou políticas acabam, em maior ou menor grau, merecendo a denominação de malditos. Luciano de Samósata, com seu Diálogos dos Mortos, Rabelais, com Gargantua, Baudelaire, com As Flores do Mal, são alguns exemplos determinantes de autores que, com o tempo, entraram para o cânone literário estabelecido, mas, apesar da posição de destaque que ocupam, nunca deixam de revelar um certo estranhamento e um grande desconforto: pelos temas controversos, pelas opções estéticas inovadoras, pela tendência de suas obras em mergulhar profundamente no lado obscuro do homem, expondo cruamente as tensões, os conflitos, as fraturas, os dramas e as feridas abertas no íntimo da alma humana, criando o que podemos chamar de uma literatura do agravo, que deixa um gosto desagradável de verdade incorrigível, um travo amargo-histriônico na boca de quem lê.

A principal característica desse tipo de literatura maldita talvez seja justamente essa capacidade de viver constantemente sob tensão, de se colocar no limite entre a amargura e a ironia, entre a raiva e o histrionismo, entre o desespero e o cinismo. A literatura brasileira contemporânea viu surgir um autor cujas obras, desde o início, estão sobremaneira carregadas desse conflito cego, dessa tendência em por a nu as misérias, os excessos e os desesperos do indivíduo moderno, condenado a uma experiência, a um tipo de experiência que nada oferece ou deixa a não ser o vazio espantoso de qualquer motivo, de qualquer finalidade que, ontológica, política ou sociologicamente, possa ser atribuída à existência humana. A vida contemporânea, cada vez mais, vai se transformando numa espécie de vácuo atormentado, num sistema de erros, falácias, enganos, que alguns autores atuais permitem entrever em suas obras. Entre eles, Marcelo Mirisola pode se considerado um autor da denúncia, que procura demonstrar certas imposturas da sociedade e da vida contemporânea que permanecem encobertas graças a uma espécie de ideologia da dissimulação e do falseamento, que impera a partir das estruturas mais fundas da sociedade.

Nascido em São Paulo e radicado em Florianópolis, Mirisola publicou seu primeiro livro – Fátima Fez os Pés Para Mostrar na Choperia -, em 1998, um volume de contos que já revelava um escritor corajoso, consciente de que a literatura, às vezes, é uma maldição, colocando-se, de imediato, junto da estirpe dos escritores malditos que, com o tempo, se marginalizaram em relação ao grande cânone dominante, que se mantiveram fora do discurso afirmativo da historiografia literária ou da crítica especializada. Depois de Fátima..., Mirisola publicou ainda O Herói Devolvido, outro volume de contos, antes de chegar ao primeiro, e por que não dizer, decisivo romance O Azul do Filho Morto, de 2002, resultado de uma decantada experiência estético-literária que já vinha se firmando a partir de seus contos e da novela Acaju – A Gênese do Ferro Quente, publicada em capítulos pela revista Cult, durante o ano de 2002.

O Azul do Filho Morto, penúltimo livro publicado pelo autor, é um romance do excesso, em que a mordacidade, a ironia, o descontentamento e a solidão de um narrador-personagem, que transparece sempre como sujeito da enunciação, confundindo-se completamente com a matéria narrada, com os descaminhos de suas experiências particulares e intransferíveis, com a narrativa que engendra como uma vingança, um grito de fúria e alerta contra o estado de coisas vigente, afirma-se a cada parágrafo, numa crítica feroz e descontrolada contra tudo e contra todos, uma crítica que não prescinde nunca de uma boa dose de cinismo e indiferença. Um narrador-personagem que anuncia a falência e o naufrágio de uma sociedade inteira, ao mesmo tempo em que afunda, lentamente, nos mesmos excessos, na mesma falta de limites, na mesma impostura que denuncia e que condena.

O romance é feito do tecido volátil da memória em dissipação, uma tentativa de resgatar ou de encontrar o momento exato em que se perdeu, em que se viu enganado pela realidade abrupta e insofismável que nos cerca diariamente do nascimento a morte:

"Outros bichinhos. Um urso com nariz de palhaço numa lata de talco enferrujada. O cachorro vira-latas que me traiu com o filho da manicure, cabritos assados pro natal. Em 1972 eu já era uma criança triste. Um dia, por incompatibilidade comigo mesmo, aprendi a olhar pra baixo. Eu tinha tesão... como toda criança... e lambia azulejos impossíveis (por desforra, decerto) e em silêncio.

Improvisei meu primeiro caleidoscópio, numa caixinha de fósforos. Viajei pra Itu e Pirapora, tive dois filhos mortos, cresci transido de medo e deslumbramento... quer dizer, isso até ontem de manhã. quando descobri que me enganaram". (Mirisola, 2002, p. 15)

A descoberta dos enganos, fortuitos e casuais ou premeditados e deliberados, não importa, vai acompanhar esse narrador ao longo de toda a narrativa, que se faz, desde o início, a partir do desencantamento e da renúncia: desencantamento com um mundo falido, de sentimentos igualmente falidos; renúncia a esse mesmo mundo baixo, minúsculo, vergonhoso, que já não permite qualquer aspiração consoladora, felicidade, em suma, como diria o narrador de Mirisola. Renúncia a tomar parte nessa realidade, mas uma renúncia que se constitui de um conflito insolúvel: abandonar esse universo sensorial, em que o sexo é o leitmotiv de tantos traumas, de tantas fraturas, de tantos excessos exige, paradoxalmente, que se afunde completamente nele, que se entregue aos delírios mais espantosos apenas para descobrir, ainda mais desencantado, a ausência de sentidos que preenche todos os espaços da vida contemporânea.

O Azul do Filho Morto é um pretenso romance de formação, mas, ao contrário do gênero inaugurado pela literatura alemã, o Bildungsroman, em que a matéria da narrativa é formada pelas experiências de uma determinada personagem ao longo de sua vida, o caminho estético, filosófico, artístico e cultural percorrido por ela até completar sua formação espiritual, no romance de Mirisola, o processo de formação leva a descoberta de uma realidade desprezível, escondida sob camadas e camadas de impostura, de uma falsa civilidade, de um bom-mocismo sem caráter e sem nome, que nem toda a sensibilidade estética do mundo pode resgatar do limbo das aparências, dos falseamentos, das máscaras e das dissimulações. A realidade desse narrador é a de uma vida baixa, em que os sentimentos foram se esgarçando lentamente até perder de toda a sua utilidade. No romance, as reminiscências mais antigas do narrador datam da Escola Experimental em que foi matriculado, quando criança, sob a suspeita de que não passasse de um retardado.

A partir dessas primeiras lembranças, desse primeiro engano, o narrador-personagem vai revelar a impostura de uma vida familiar desarticulada, formada por uma mãe histérica, uma avó louca, um pai fracassado e um avô - a única figura com quem o narrador se identifica - truculento, grosseiro, dono de um açougue, que passa a vida entre as vísceras de animais mortos, jogos de futebol aos domingos e longos passeios de automóvel na companhia do neto. Nada mais justo que o narrador, nesse contexto, sofra desde a infância a estranha sensação de inadequação, de peça fora do lugar, de alguém abandonado a si próprio, no centro de um universo familiar complexo, desagregado, à beira de uma falência total e absoluta, que irá marcar decisivamente as impressões e as sensações de um indivíduo que, com o tempo, se percebe sozinho e desajustado em relação à realidade que o cerca.

"Bem, desisti dos malditos cubinhos de encaixar e não passei da primeira fase da Fuvest, duas vezes. Em casa, muita gritaria e porrada, minha mãe ameaçava suicidar-se e maldizia o fruto do próprio ventre e do ventre de Maria, Jesus, os três Reis Magos, os coelhos especialmente e quem estivesse na frente dela, entrava na dança. Alguma coisa assim:

- o que eu fiz para merecer “isso”.

Até pode parecer exagero de escritor. Infidelidade, ou “um desgosto”: termo muito usado por minha mãe para se referir aos filhos, ao longo de uma vida..."

(...)

"Ah, já sei. “Isso”. Eu era o “isso” do meio, o filho do meio. E, a despeito dos meus “progressos”, não saia do quartinho da empregada". (Mirisola, 2002, p. 17)

Uma vida feita de pequenos traumas, de uma família desarticulada, de uma infância perdida, em que o sexo começa no “quartinho da empregada”, que não passa de uma “negrinha desgraçada”, e acompanha esse narrador, de forma obsessiva, por toda a vida. E a realidade dessas personagens se faz de preconceitos, racismos, vergonhas e humilhações atávicas que vão passando, hereditariamente, de pai para filho, que se atualizam de geração para geração, e que não significam mais do que uma vingança calculada contra a própria condição em se que encontra, contra si mesmo, sob a aparência de remorso, quem sabe, mal dissimulado pelo cinismo corrosivo que adota como um escudo.

"Eu quero falar do meu avô. O velho trabalhava no mercadão. Eu o admirava por causa do cheiro de charque e por causa dos genocídios e das ternuras que ele ensejava ao chegar em casa do trabalho, ele, o “dessossador”, não ligava pras miudezas e, além de ter uma cicatriz na panturrilha coberta por uma teia de varizes, sobretudo foi meu amigo. Aprendi com ele o segredo dos “vazios” (que sempre me encantaram pela mistura evidente de carne morta com absolutamente nada) e, com ele, aprendi os cortes e as respectivas divisões de uma paleta; virei um exímio fatiador de salaminhos e também, com meu avô, aprendi a ser um racista generoso e sentimental – embora eu levasse toda essa bandalha com muito pudor e constrangimento". (Mirisola, 2002, p. 18)

A primeira parte do romance é dedicada à infância e à adolescência do narrador, seu primeiro momento de formação, sua primeira exposição mais direta, imediata e consciente a essa realidade claustrofóbica, sufocante, que irá, sob muitos aspectos, determinar suas perspectivas, seus pontos de vista, sua visão de mundo vida afora. E, no contexto do romance, passa a ser também sua primeira tentativa de expiação, o início de uma vingança que se articula impiedosamente contra a ordem familiar sob a qual cresceu e que, em vários aspectos, determinou profundamente seu caráter, obrigando-lhe a solidão e o vazio existencial em que se encontra quando leva a efeito o resgate de uma existência que, irremediavelmente, talvez já esteja perdida, confinada nos domínios impenetráveis da ironia mordaz, do cinismo que se transforma num certo modo de ser diante da vida, num certo modo de encarar e compreender o mundo e, até, por que não dizer, numa certa maneira de se redimir diante dos seres e das coisas.

"Ou por outra. Com o tempo, a canalhice vai tomando ares de cinismo e, talvez, por falta de opção – e muito romantismo, no meu caso – a gente deixa de ser canalha. Um livro de memórias serve pressas coisas. Um pouco pra retomar a canalhice perdida. Outro tanto para matar e enterrar com veemência aquilo ou aqueles que há muito já deveriam estar mortos, matados e enterrados. Senão por vingança, por compaixão". (Mirisola, 2002, p. 18)

De uma infância perturbada, assombrada por uma família real e essencialmente assustadora, para uma juventude em que o narrador confirma uma tendência ao isolamento e à descrença, ao abandono e ao cinismo, ao assassínio lento de si mesmo, de tudo o que é ou veio a ser, de tudo o que se fez, ao longo dos anos, ou que lhe fizeram: é a derrocada de todos os sentimentos, a descoberta de todos os enganos, e a perspectiva de uma vida que se confunde, a partir de agora, com uma condenação insustentável a não ser pelos gestos cínicos, desesperados, que dissimulam tudo, ou por uma certa fé besta, que nada tem a ver com inocência, mas sim com concessões, por meio de um lirismo duro, seco, direto, violento e perturbador, como a sua própria desilusão.

"Ontem de manhã, descobri que me enganaram. Eu – quer dizer, até ontem de manhã – tinha a mania de repartir o cabelo pro lado esquerdo. Às vezes me apaixonava por donas de casa e vislumbrava um futuro de churrascarias caríssimas aos domingos. (...) Daí a importância do episódio do poço: joguei meu primeiro cadáver lá dentro: eu mesmo. Isso chega a ser óbvio. Do mesmo jeito – óbvio, como o desejo do suicídio – a gente também tem que saber morrer e tem que saber se matar e enterrar a si mesmo e, sobretudo, matar e enterrar a quem mais se amou (mesmo que esse amor tenha sido reconhecidamente um furioso equívoco): amor por demais; portanto vivido, enganado e matado, nunca morto demais". (Mirisola, 2002, p. 76)

Um narrador ardiloso, uma voz forte, agressiva, violenta e desiludida, mas que ainda se permite um certo lirismo, uma certa maneira de olhar para si mesmo e para a vida evitando algumas arestas, embora se fira constantemente em outras: o sexo, por exemplo, que, com o tempo, se esvaziou junto com todas as outras experiências vividas ou ensaiadas, que prescindiu do amor e fez do corpo uma máquina de engrenagens gastas, enrustidas, de cansaços e frustrações acumuladas, que não goza ou sente prazer, porque responde automaticamente aos instintos mais baixos da alma humana, que não se reconhece no outro, por isso explora as mulheres, por isso se envolve com profissionais que aceitam o jogo vazio das práticas sexuais mais indescritíveis, fazendo do sexo um simulacro de prazer, uma tentativa de reconhecimento e de afirmação que, como tantas outras - a literatura aí incluída –, também fracassa. A verdade é que, em todo o romance, o sexo vai ser sempre uma experiência atormentadora e vazia para esse narrador atormentado, confuso e sozinho: da infância com as empregadas à maturidade com manicures, cabeleireiras, balconistas, estudantes, psicólogas, mulheres da vida e afins, o sexo vai trazer em si uma componente patética, desumanizada, sem raízes mais fundas que não as de um prazer dilacerado, mecânico e angustiante.

Talvez por isso, no prefácio ao primeiro livro de contos do autor, a escritora e psicanalista Maria Rita Kehl, procurando uma filiação possível para o autor, irá afirmar que o narrador de Marcelo Mirisola tem o talento para o insulto e a força da voz do narrador celiniano, mas que o texto de Céline é ainda mais duro, faltam-lhe os rápidos instantes de enternecimento que encontramos em algumas passagens, sejam dos contos, sejam do romance de Mirisola, e Maria Rita continua, concluindo que falta ao texto de Céline os mergulhos também rapidíssimos no contentamento ou, o que é mais raro, em se tratando de escritores malditos, falta a Céline uma certa bobeira de esperança, que às vezes o narrador-personagem de Mirisola permite para quebrar o rumo da prosa. O autor de O Azul do Filho Morto seria, então, segundo Maria Rita, um Céline mais moleque, um pouco menos raivoso, gostando muito de sexo, mas sabendo o tempo todo o quanto é impossível gozar e, portanto, escrevendo como um tarado, em nome disto que não se pode alcançar. Na verdade, todos os esforços de Maria Rita em encontrar uma filiação estética para Mirisola acabam por falhar. O motivo é justo: nem Céline, nem Henry Miller, nem Charles Bukóvski, nem John Fante, nenhum destes autores são Marcelo Mirisola, nenhum deles nasceram no Brasil, na década de 60, nenhum deles surgiram para a literatura em uma época de esgotamento cultural, político, econômico, intelectual e artístico tão grande quanto o da contemporaneidade, herdeira direta do fim da utopia libertária hippie e do vácuo ideológico dos anos 80. Nenhum deles experimentou tão de perto a falência das ideologias como Marcelo Mirisola.

Difícil, então, estabelecer uma filiação que explique a escritura de Marcelo Mirisola, essa literatura enfurecida, que encarna em si o universo asfixiante da sociedade contemporânea, com seus ídolos da hora, com seus produtos de consumo fácil, com suas referências televisivas. Nesse sentido, Mirisola não faz nada que não seja azucrinar uma classe-média subserviente, idiotizada e patética, asfixiada pelos subprodutos oferecidos pela mídia, pela sociedade de consumo, fundamentada sobre a égide da publicidade e da propaganda, esfregando na cara dela o lixo cultural que nos cerca diariamente, há mais de vinte anos: a cozinheira Ofélia Anunciatto, os apresentadores Flávio Cavalcanti, Bolinha, Blota Jr., Amauri Jr., Xuxa, Uma Thurman, Carla Carmurati, Trio Parada Dura, todos personagens incidentais de uma literatura que se faz como um soco bem dado na boca do estômago, violenta e agressiva, em que o sexo transparece como a componente mais patética e frustrante de nossa alminha minúscula, combustível de nossos enganos pessoais e intransferíveis.

Mas antes de tudo, é preciso compreender que Marcelo Mirisola faz uma literatura do mal-estar, em que a tônica é a sensação de vertigem que sofremos ao mergulharmos de cabeça num mundo de frustrações, desesperos e misérias, em que a vítima constante, além do próprio narrador, é essa classe-média esvaziada de sentidos ou valores, subproduto da indústria cultural, da mídia, do shopping center e da publicidade, refém de ícones midiáticos aos quais devota sua atenção e seu assombro. Pode-se pensar, para Marcelo Mirisola, em uma filiação estética nacional, que remonte à Nelson Rodrigues. O problema é que no teatro de Nelson, um teatro tão violento e desagradável quanto a prosa de Mirisola, ou nos contos de A Vida Como Ela É..., o drama concentrado, a tragédia diária, o conflito amargo de valores, posturas e atitudes, explodem na revelação iluminadora das grandes chagas morais que violam a consciência das personagens, que afloram aos sentidos e imprimem a todos uma inelutável dimensão trágica, um inexorável sentimento de culpa, desespero e humilhação diante da própria condição. Em Mirisola, os dramas humanos surgem dosados de cinismo, são expostos pela lente devassadora de uma ironia esgarçada, louca, patética e histriônica. Em ambos os autores não há saídas viáveis ou anunciadas, embora em Nelson, a culpa, o sentimento trágico inerente à consciência de suas personagens acaba sempre por acenar para uma redenção possível, ainda que o caminho seja a morte, a extinção do corpo e das misérias que este impõe ao espírito. Em Mirisola, a culpa ou o sentimento trágico não são dados do caráter, ao contrário, são combustíveis para novos enganos, para outros traumas.

Marcelo Mirisola, com O Azul do Filho Morto, foi acusado de potencializar uma série de preconceitos que já serviam de combustível para suas histórias desde Fátima Fez os Pés Para Mostrar na Choperia. Na verdade, os preconceitos de Mirisola, de seu narrador-personagem em busca de si mesmo, de sua compreensão mais funda, são os mesmos preconceitos que nos servem como tecido e justificativa. A diferença é que Mirisola não aceita impunemente as máscaras de uma impostura vulgar, que finge, mente ou disfarça qualquer vilania diante do mundo e da vida. Ao contrário, é dos sentimentos e das sensações exacerbadas de seu narrador que surge a possibilidade do reconhecimento, da revelação, da descoberta terrível e espantosa de que todos nós temos esse lado obscuro que gera frustrações, infelicidades, angústias e preconceitos irreconciliáveis. Todos nós, no fim das contas, procuramos uma saída e evitamos encarar, de chofre, nossos filhos mortos.

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