quarta-feira, 28 de maio de 2008

Encenando a si mesmo na terra em trânsito

Por Gunter Axt
Com tanta coisa para se falar, escrever sobre um quiprocó parece perda de tempo. Mas nem sempre é. Dois importantes nomes do teatro, Fernando Arrabal e Gerald Thomas, se encontraram numa noite de outono em Porto Alegre. E se estranharam pra valer! Em grande parte, briga de vaidades. Mas não só isso.

A idéia era oportunizar uma reflexão sobre o teatro na contemporaneidade e sobre o trabalho de cada um. Ambos dariam uma conferência de cerca de 45 minutos e, depois, teríamos um debate com o público. Aproximava-os a particular experiência de convívio com Samuel Beckett, grande dramaturgo do século XX. Nobel de literatura em 1969, sua obra, composta de peças, romances, novelas, contos, ensaios e até filmes e rádio é rica em linguagem metafórica, crítica em relação à modernidade, ao ponto de beirar o pessimismo sobre a condição humana. Junto com o romeno, Eugène Ionesco, condensou o que se convencionou chamar de teatro do absurdo, uma forma de dramaturgia moderna que teve no porto-alegrense Qorpo Santo (1829-1883) um de seus mais peculiares precursores. Enredos envolvendo personagens em situações ilógicas, inusitadas e chocantes, provocando um deslocamento de retina mais lógico do que nunca quando se trata de captar com criticidade dramática a opressão circundante e a incoerência humanística da sociedade.

Beckett falava por meio de seus personagens, mas na vida pessoal, era um recluso, quase sócio-fóbico, o que tornaria a experiência de Thomas e Arrabal ainda mais preciosa. Que oportunidade para falarmos, por exemplo, sobre o porquê Esperando Godot - que Gerald, aliás, montara em 1990 em Munique - é uma peça que dividiu o século XX!

Ahhh...nessas horas valeria lembrar Jacques Derrida, cujas reflexões sobre a autobiografia em meados dos anos 1980 negam categoricamente a chance de construção de um saber sobre a experiência, porque não teríamos como saber o que é a experiência. Conclui-se daí, como sublinha Beatriz Sarlo, pela impossibilidade de se alcançar um relato capaz de dar unidade ao eu, ao sujeito, de matizar esta fronteira (?!) difusa entre os fatos supostamente empíricos e a sua essência identitária. É Nietzsche quem fala aqui nas entrelinhas, para quem a credibilidade de um relato repousa na assinatura do enunciante: "Vivo o meu próprio crédito", disse, "e talvez seja um simples preconceito que eu viva". Não foi Gerald Thomas quem disse "a minha vida inteira é uma mentira na medida em que eu não sei qual a minha verdadeira nacionalidade e não sei até hoje o trajeto completo que percorri quando criança. E ninguém mais pode me responder, pois estão todos mortos"?

Coragem, talvez, para poucos, capazes de viver cotidianamente o autoquestionamento sem fim dessa lógica nietzschiana. Identidade? Qual o quê? Um judeu errante que é brasileiro, americano, inglês, alemão, que não pode saber nem exatamente onde nasceu, que aos 28 anos descobriu que seu pai não era seu pai, que sente na carne esta prosopopéia limite de sobreviver a uma família dizimada (foram, creio, 8 mortos!) pelo horror nazista, para, paradoxalmente, testemunhar pelos mortos?!

Sem família, sem raízes (Nowhere Man) - a solidão é criativa, propicia um mergulho em si mesmo, para longe desse Quatsch que escorre pelas ruas lá fora -, Gerald não lida bem com a morte. Haroldo de Campos - ponto de inflexão na modernidade brasileira, cuja obra lhe foi inspiradora - havia morrido horas antes daquela encenação de Tristão e Isolda (2003), no Rio de Janeiro, em que Gerald subiu ao palco e mostrou a bunda ao ser provocado por alguns dos espectadores, o que lhe valeu até um processo judicial. Gerald não estava no Brasil quando sua mãe faleceu, depois de três anos em um asilo judaico na Tijuca, internação com qual também nunca lidou bem. Seu tio se suicidou aos 17 anos de idade, quando sua avó, uma dama da sociedade viciada em heroína, pretendia que ele se relacionasse amorosamente com um oficial da Gestapo para escapar do nazismo. Sim, e isto está na peça Rainha Mentira/Queen Liar (2007), pois tudo aquilo com o que é mais difícil de lidar, também é o melhor material para a criação. E nem dá para se ter o luxo de viver um barraco literário-familiar, como o de Michel Houellebecq, que acaba de ser acusado pela própria mãe, insatisfeita com o retrato em Partículas Elementares, de mentiroso e de parasita.

No domingo, Gerald ligou no meu celular, pouco antes de embarcar para Porto Alegre: "preciso mesmo ir hoje? Com tantas mortes acontecendo nos últimos tempos tenho me sentido cansado, desanimado". O pai biológico de Gerald falecera há poucos dias, nos Estados Unidos, onde também falecera um amigo seu. "É dia das mães", retruquei, "e Dona Eva estará no jantar de hoje à noite". Dona Eva Sopher, aos 84 anos o incansável anjo da guarda do Theatro São Pedro, ela própria refugiada do pesadelo nazista. Fusão de firmeza e doçura, a ela Gerald se refere como - Mutter - sua segunda mãe.

Ao jantar, em restaurante à beira do Guaíba, na zona sul, o primeiro a chegar foi Arrabal, o dramaturgo mais encenado na Europa no momento, cuja peça O Arquiteto e o Imperador da Assíria teve uma montagem histórica no Brasil, em 1970, com José Wilker e Rubens Correia - um dos maiores êxitos do Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro. Em companhia de sua simpática esposa e de Dona Eva, acomodamo-nos junto à lareira. Falamos das duas vezes que Dona Eva trouxera Eugène Ionesco a Porto Alegre, porém, indelicado, Arrabal simulou um cochilo. Um telefonema do Rio de Janeiro despertou-o.

Thomas chegou e quase foi embora, quando Arrabal disse desconhecer seu trabalho de adaptação e direção de 12 estréias mundiais de obras de Samuel Beckett no mitológico La MaMa Experimental Theater, em Nova York. Bem como o Mattogrosso, com Philip Glass. Impossível não conhecê-lo. A conversa avançou sobre o histórico de montagens da peça O Cemitério de Automóveis, de Arrabal. E fluiu para enxadristas, matemática, teorias de conspiração e política. Arrabal, que falava quase sozinho, gracejou sem graça sobre opções de Victor Garcia, que montara o Cemitério em 1968, em São Paulo, e propôs não haver diferenças entre W. Bush e Barack Obama. Thomas engoliu em seco. Mas em meio a uma conversa sobre ditadores, perguntou por que, sendo Arrabal espanhol, não mencionara Franco. Sim, todos sabem da luta de Arrabal contra o franquismo. Mas era uma pergunta e Arrabal não mostrou a mesma condescendência, explodindo: "És um cretino e desconheces minha biografia". Jogou um livro ao seu respeito sobre Thomas e retirou-se. Quando voltei à mesa, depois de acompanhar o casal até o carro, Thomas, categórico, disse-me: "não subo ao palco em companhia desse sujeito e vais ter de cancelar o debate previsto".

No dia seguinte, Arrabal acordou animadíssimo e Thomas indisposto. Pedi a ele que não rendesse o conflito da véspera. Mas quem o segura? Já na coletiva de imprensa, distribuiu farpas. Provocativo e contundente, não foi exatamente simpático - e muitos jornalistas não estavam usando coletes à prova de balas. Para surpresa geral, repetiu várias vezes, como se estivesse em cena: "o teatro não tem a menor importância!" Espalhou desconcerto ao declarar que podia abandoná-lo.

Fomos, depois, eu e Thomas, ao Theatro São Pedro - a jóia de 150 anos que a classe teatral brasileira ama -, visitar a nova obra, um anexo de sete andares e três palcos. Dona Eva conduziu-nos ao final da visita por uma portinha lateral para o interior do velho teatro. Da reforma dos camarins, subimos ao palco. Era segunda-feira e o teatro estava fechado, mas a movimentação sobre o palco era intensa. Montava-se o cenário para o espetáculo do grupo de jazz Delicatessen. Um rapaz, ocupado com a montagem, olhou-nos com brilho incomum nos olhos: por instantes, dividia aquele palco tradicional com Dona Eva e Gerald Thomas.

Fitando a platéia e os elegantes camarotes sem espectadores - um vazio intenso, envolvente, tranqüilo e cheio de vozes, impressão de aconchego transmitida pelo veludo vermelho das poltronas, pela madeira, pela luz esmaecida do enorme lustre de cristal de 68 mangas em forma de folha de plátano a pender dos afrescos no teto - lembrei das vezes em que estive do outro lado, atento ao palco, aplaudindo aquele homem de pé, numa onda uníssona com mais 700 outras pessoas: Bete Coelho em Carmen com Filtro 2 (1990); Giulia Gam em M.o.r.t.e (1991); Fernanda Montenegro emergindo no palco envolta em andrajos pós-atômicos pelo buraco do ponto em The Flasch And Crash Days - Tempestade & Fúria (1992), peça radicalmente modificada no palco do São Pedro; a perturbadora cena da masturbação entre mãe e filha, personagens e vida real, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres; uma senhora tossindo compulsivamente no camarote lateral; a voz de Thomas ecoando, plácida, pelas caixas de som, as Fernandas no palco repetindo com angústia: "pessoas tossindo...não estão preparadas para ir ao teatro...", num improviso inesperado. Metalinguagem, a assinatura de Thomas ecoando pelas paredes despidas do São Pedro, como quando ele dirigiu em Nova Iorque Julian Beck (That Time), que estava com câncer terminal e fazia o papel de alguém morrendo, resultado arrepiante: harmonia atonal.

Cenário noir, pós-punk, urros, figurino em farrapos, trapos humanos, humor macabro, sangue, tripas, cortinas metálicas, a pedra crua, fumaça rasgada por potentes fachos de luz branca. Einstürzende Neubauten. Desconexão imagética e pesadelo coletivo. Estética que aprisiona a criação, que parece até cansada, num mundo pós-queda do Muro de Berlim, onde vingou a utopia da ausência de fronteiras e os Blade Runners foram sombras do passado do futuro, mas que renasce no 11 de Setembro. Ground Zero, onde a revista Caras encontrou Gerald Thomas voluntário, metido em uma roupa de plástico laranja, atrás dos restos mortais de tantos milhares de vítimas, durante 21 dias. O buraco do super-homem em Deus Ex Machina (2001). O bombeiro nonsense em pleno incêndio, representado por Fábio Pinheiro em Queen Liar.

Em pé, sobre o palco do São Pedro, eu deixava estas imagens dançarem. Ao nosso redor, a agitação da montagem de mais um cenário. De súbito, Gerald explodiu em lágrimas. Desabafo incontido, enquanto soava no palco um lamento dos irmãos Gershwin, na voz cristalina de Ana Kruger, do Delicatessen. "Te trouxe aqui para mostrar que ainda há vida no palco", disse Dona Eva, serena, a um Gerald que nela abraçara-se, aos soluços.

À noite, mais um palco, dessa vez, na Universidade Federal. Fernando Arrabal mostrou domínio de cena, escandindo as letras em sua fala, sibilante. Abraçado a um crocodilo de plástico, provocou frêmitos e risos na platéia, desenhou belas metáforas e contou causos descosidos. Sucedeu-o, Gerald, de quem se esperava, talvez, o preenchimento dessa lacuna de conteúdo. Ridicularizou seu antecessor. Pareceu engatar ao mostrar foto sua com Beckett, em Paris. Apresentou um vídeo com fragmentos de trabalhos seus e contou que estava produzindo uma ópera sobre Hemingway, célebre expoente da geração perdida. Contou tudo isso enquanto pedia uma máquina fotográfica emprestada de uma pessoa na platéia e batia uma foto dela, comentava que não tinha lavado seu cabelo, mostrava que não havia wireless no palco e elogiava a beleza da monitora que lhe levou um copo d'água.

Mas sentiu-se só. Perdido. Para o artista em crise (Terra em Trânsito, 2007), que percebera o quão sedutor é o teatro para um diretor que só deseja espalhar seu ego no palco, sua própria imagem refletida nos telões podia ser desconcertante. Confessou-se novamente enjoado de seu próprio trabalho. De si mesmo, talvez. Descrente da força transformadora do teatro num mundo onde as pessoas investem seu tempo na conexão de massa, em responder e-mails, enviar torpedos, pendurar-se ao celular. Mais de mil pessoas, entretanto, haviam largado seus i-pods, lap-tops, televisores e etc. para assisti-lo ali...

Tentou interagir com o público, mas irritou-se logo com as perguntas e pôs-se a disparar, belicoso. Criticou, em tom agressivo, a existência do Estado de Israel, numa referência sub-reptícia a David Hirst e a Norman Finkelstein, e explícita (!!) a Mahmoud Ahmadinejad. Difícil de entender, de aceitar. Artista, Gerald é impulsivo e provavelmente não se sente compromissado com a verdade. Arrancou aplausos pingados e provocou indignação de vários, que, exercitando o seu direito, deixaram o auditório. Ironizou os que saíam. Então, concluiu não estar agradando, disse não saber mais o que fazia ali, duvidou da capacidade do debate intelectual de mudar alguma coisa, de fazer alguma diferença, num mundo com tanta miséria e com tanta guerra. Depois de 37 minutos, abandonou abruptamente a arena, atraindo mais vaias do que aplausos.

Grande parte do público ficou chocada, incomodada, decepcionada. No dia seguinte, pelo seu blog, o próprio Gerald reconheceu o erro e pediu desculpas. E desculpou-se também com a comunidade judaica e com os jornalistas, com os quais fora especialmente duro. Reiterou estas desculpas no programa de Serginho Groisman. Mas a imprensa não o perdoou e durante mais de uma semana, foi assunto nas páginas dos jornais entre Porto Alegre e São Paulo, no rádio e na televisão.
Um programa de rádio de Porto Alegre fez uma enquête: 76% dos ouvintes acharam que a briga prejudicava a imagem dos contendores. Público exigente, a cidade pode ser inclemente com aqueles que admira. Em 1995, no mesmo salão de atos da Ufrgs, na estréia nacional de Elogio, montagem então ainda imatura, com seus dois filhos e Cida Moreira, Denise Stoklos apanhou uma vaia de quase dez minutos, no meio do espetáculo. Tivera muitos triunfos em Porto Alegre. E voltaria a tê-los. O último contato da cidade com Gerald Thomas fora em 2005, na temporada de Um Circo de Rins e Fígados. O Teatro do SESI veio abaixo em aplausos, quando Marco Nanini subiu em uma caixa e gritou em desabafo, retratando um labirinto burocrático: "esse país não tem jeito!"

Nem tudo, contudo, foi perdido. O que se viu foi algo entre um surto e um happening, a expressão do pensamento em uma de suas fronteiras mais longínquas. O absurdo. De Beckett, pouco se falou. Mas ele estava ali, mesmo que um tanto deformado, em conceito. Nessa linha de transmissão direta entre autor e personagem, nesse amálgama entre delírio, realidade e cotidiano. No palco, um homem nu, exposto em suas contradições e, por que não, inseguranças. Pode não ter sido divertido, muito menos polido, mas foi uma demonstração coragem pela auto-exposição de uma crise, de indistinção entre criador e criatura, de mutualismo entre artista e sua obra. Imprevisibilidade absoluta do improviso. Ultra-exposto, crítico, nietzscheanamente relativo, super ego, Thomas foi o encenador de si mesmo, provocando o debate numa escala inusitada na cidade, para o bem e para o mal. Desdobramentos de uma noite que entrou para a história. A metalinguagem disso? O império da incerteza, a solidão marginal do artista, a dor da criação que já dilacerou tantos criadores, a arte como impressão, como infecção, que engole alguns. O pensamento na fronteira do absurdo. E o teatro, mesmo em crise, importando sim, mais do que nunca. "Não importa", diria Beckett, "Tente outra vez. Fracasse outra vez. Fracasse melhor."
Gunter Axt é historiador

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