sábado, 22 de dezembro de 2007

Quatro Mundos Nascidos da Mundo de Cetim

Quatro Mundos Nascidos do Cetim: Bernardo, Memórias do Infortúnio, Cosmofilia & Águas

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior


Tornou-se um lugar comum no Brasil dizer que literatura brasileira não vende. A falta de renovação de talentos ameaça, inclusive, a existência de nossa literatura, que, segundo alguns, corre risco de extinguir-se e passar a viver apenas dos livros de celebridades tais como Jô Soares, Bruna Lombardi e Paulo Coelho. Esse último, sintomaticamente um dos mais vendidos, sempre aclimatou seus livros em todos os lugares, menos no Brasil. Vem daí a importância de uma editora nova e independente tal como a Mundo de Cetim, capitaneada pelo poeta Ramon Maia. Falar de seus lançamentos, portanto, é traçar estratégias de sobrevivência tanto do editor, do poeta quanto do crítico.
Um clima poético permeia Memórias do Infortúnio (Ramon Maia, Mundo de Cetim, 2006), mas aqui o clima se torna concreta prosa poética. Dentre os dilemas de uma casta diva, que desliza entre a estéril solidão e a melodia unânime e frívola. Caminha como uma personagem aparentemente poética e perdida na multidão, na súcia ensandecida. A alma de Ramon, alma de poeta, no extremo de si, vê-se em pleno estertor de criar essas memórias. Começa a narrativa de forma muito elegante: “Ofereceu-me fósforo a fim de que eu acendesse meu cigarro. O obséquio parece-me estrangeiro diante da pletora do ríspido que tanto me aborda. Devolvi-lhe um sorriso tímido e certeiro, contumaz, talvez, espanto na indagação do primeiro gesto, da mão que se estende ao ver balançar ao léu por entre lábios trêmulos”. Trata-se de uma passagem em que a personagem nebulosa da mulher, entre o evolar da fumaça e a duração de um toque ao café, deixa-se como uma imersa, confundida, indiscernível no volume; ela se se lança ao delicado, tal que o autor nessas memórias. Há uma frase forte de Ramon que fica, depois da maré e da ressaca: “meu outono irremediável perscrutava marolas de mim”. Em Da Vanidade, capítulo dessas afortunadas memórias, o autor oscilou entre o cômico e o sagrado ao buscar, tal qual um Santo Graal, a produção do literato Raimundo Periquito em um monastério. Muito curioso também foi o processo de desnaturação ontológica que surgiu no decorrer dessa busca, uma verdadeira descontrução ôntica da dialética da malandragem. Há momentos em que a narrativa partiu diretamente para o realismo fantástico; outros existem em que o autor capta, esboça impressões, tal que um pintor impressionista; finalmente, quem sabe num traço que o define, faz uso de um estilo metafórico, de vocabulário rico, de talhe barroco e hermético.
A prosa de Ramon é bem poética também em Bernardo (Memórias de Exílio e Cisão, Mundo de Cetim, 2005). Essa primeira memória, estréia do autor de três livros de poemas como prosador, possui um traço mais realista; quando trata da infância de Bernardo, possivelmente colheu elementos biográficos. Igualmente, dentro de Bernardo, há a voz, uma espécie de heterônimo feminino, de Maria dos Prazeres, que representa a poesia quase em estado puro dentro dessas memórias; é quase um fluxo de inconsciência intercalado. A escrita busca idéia, imagem, fogo, tela, papel, acrílica. Tanto nessa quanto na outra memória existiu todo um devaneio ligado ao mar e às coisas marinhas, sempre surgindo como signo de liberdade e imaginação infinita, sem peias. A prosa floreada, artística, intensamente trabalhada, talvez mais aveludada que acetinada, das duas memórias de Ramon Maia também foi uma grande contribuição de um escritor que também se fez bom editor, atuando corajosamente ao editar poesia e prosa de autores iniciantes e da própria pena, num País onde os autores iniciantes parecem condenados ao limbo pela maioria das editoras e tudo o que se faz parece subserviente ao Deus do Mercado.
O livro Cosmofilia (Baco Graco, editora Mundo de Cetim, 2006) é uma poesia discursiva, ritmada, exuberante de vida. Um texto que ousa dizer, num mundo carente de sentido e significado. Suas palavras são prenhes de sentidos, buscando, tentacular, uma multiplicidade de objetos do mundo, navegando pelas singularidades, consciente de seu material, usando de três atitudes básicas: a disposição de um rico arsenal vocabular, um poderoso jogo de imagens e uma relação de temas de origens mítico-órficas.
Baseado em Marx, Baco afirma: “Eu estou completo/com meu álcool e minha droga, derramo feito copo engolido pela água: sede da água./Marx, o sedento, deixou escrito que a paixão é a força essencial do homem, de tendência enérgica ao objeto”. Nesse momento, Baco mostrou-se o mais perigoso tipo de marxista: o poeta marxista. Há, inclusive, um poeta dedicado a Roberto Piva, grande poeta brasileiro admirador de um dos mais perigosos poetas marxistas já surgidos: Pier Paolo Pasolini. Marxista bacante, professor e estudante de Filosofia de trinta anos, Baco Graco fez, dentre outras obras marcantes, belíssima ode à cerveja: “A cerveja desce de veludo/mergulha na alma/acariciando o coração/a cerveja viaja sem compromisso/chega sem boa noite/ e é a noite. A cerveja reluz dourada e é algo mais que o ouro/ a cerveja espuma e avança como um mar inscrito no copo (...). A cerveja diz no ouvido/verdades só nossas.” Cosmofilia é uma excelente estréia e boa revelação de um grande autor.
Já Águas (Sílvio Neves, Mundo de Cetim, 2006), aderiu ao comedimento poético nas searas da poética recente. O poeta, maduro, deixa o dito pelo não-dito. Do pego na bátega, muitos de seus diamantes são preciosos, mas pagam apenas metade do esforço dispendido. É uma coleção de 52 poemas, nenhum mais extenso do que uma página. O objetivo foi seguir as lições hegemônicas de João Cabral e Leminski. Seus verbos, mais que delirantes, são racionados, dosados em conta-gotas. Ele teatralizou estáticos obuses, deu tiros na lebre de vidro, mesmo vendo que ela é estática clepsidra. Mas como fazer o verbo delirar, se há até mesmo poemas sem verbo, como Dísticos Recortes de Diamantina? O poema é, aliás, um dos melhores do livro, justamente por se tratar de um momento em que o poeta abandonou um pouco sua preferência pelo som e perseverou no sentido.
Também plena de sentido é Canto, poesia dedicada aos músicos Elzi e Helvécio, onde falou da voz que subtraiu o silêncio; há todo um Réquiem Cerrado, com direito a andantino, presto e adagio. Sílvio enfim se aproxima da música, musa da qual se afastara só para ficar mais cabralino em seu desprezo pela música. Há, no entanto, um quê de Cruz e Sousa em Sílvio Neves, um certo privilégio da musicalidade, do som dos poemas em detrimento do conteúdo, do sentido. Os poemas ganham quando recitados, pois, muitas vezes, quando lidos, parecem vagas e veludosas vozes, mots en liberté soltas, vox clamantis por verbos de ligação.
Outras paixões de Sílvio se destacaram: Futebol Acuado e Lance falam da paixão do poeta pelo futebol, que se mostra parecida com a de Gonzaga e Marília: o poeta mais torce e observa do que desfruta lances prazerosos com ela. Mais do que seguidor de João Cabral, Sílvio sofre do efeito Cabral, ou seja, reafirma a própria poesia cerebral: “Cirúrgicos poemas/o cérebro desobstrui/como se coração fosse”. Uma vez na zona rural de Diamantina, reflete: “floresce algo em mim”. Sua ambição, no entanto, é preparar-se para pedra à la Manoel de Barros, “ter a mudez de um riacho”. A insanidade (e não só a faca), descobre Sílvio, também é lâmina. O risco é que, passado o feito em revista, muito se perca na voragem das Águas: atentemos para o fato de que telhado não se faz sem risco. Embora com algumas licenças poéticas acima citadas, o autor conduz o livro com maturidade e segurança; o lançamento de qualidade enriquece a poesia mineira e brasileira, tal como os outros títulos da Mundo de Cetim acima referidos.

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