quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O Barco Bêbado (Rimbaud)

Quando eu vinha a descer uns rios impassíveis,A mão dos sirgadores senti já não presente:De peles-vermelhas guinchantes eram alvo,Que os tinham, nus, atado aos postes pintalgados.Descuidoso eu me sentia de qualquer equipagem,Com algodão da Ingalterra ou trigo de Flandres.Acabada a algazarra com meus sirgadores,Permitiram-me os rios descer onde eu queria.Nas marulhadas em fúria das marés, eu, masis surdo que infantil cérebro, no outro inverno,Eu corri. E as penínsulas desatracadas nunca desordens mais triunfantes aguentaram.Benzeu-me a tempestade os alertas marítimos.Mais leve que uma rolha, dancei sobre as vagas,Essas eternas rodopiadoras de vítimas,Por dez noites, sem malogro de faróis vesgos.Entrou-me no casco a verde àgua, mais doceQue para crianças a polpa de àcida maçã,E assim me lavou as manchas de vinho, azuis,e vômitos, dispersando leme e fateixa.Um frágil barco, qual borboleta de maio.Banhado em vossos langores, não posso, ó vagas, O sulco arrebatar aos portadores de algodão, nem passar o orgulho de lábaros e chamas,Tão pouco nadar ao olho atroz dos pontões.Banhei-me no Poema do Mar, logo a seguir infuso de astros, lactescente, e devorando Os espaços verdes, onde às vezes flutua, pálido e arrastado, um pensativo afogado;Onde, súbito os azuis tingindo, delírios e ritmos lentos sob as diurnas rutilâncias, fermentam rubras, amargas manchas de amor, mais fortes que o àlcool e mais vastas que liras.Sei os céus estourando em relâmpagos, e as trombas e as ressacas e as correntes;sei a noite,A Alba exaltada, qual um povo de pombas e vi, o que o homem julgou ver! Vi o sol, declinando, manchado de horrores místicos, alumiando com longos coalhos de cor roxa, que diríamos atores de tragédia antiga, as vagas, longe, a rolar adejos tremulantes! Sonhei a noite verde com neves ofuscadas, beijo que aos olhos dos mares lento se eleva, as seivas prodigiosas circulando e o lume azul e amarelo dos fósforos cantores!Persegui, quantos meses, igual a estábulos histéricos, o marulho contra os recifes, sem pensar que os pés luminosos das marias, o focinho forçassem dos oceanos fumegantes! Sabei que eu tropecei em fabulosas floridas, que às flores se misturavam olhos de panteras com pele de homem! Aos arco-íris, tensos como bridas, no horizonte, glaucos rebanhos! Vi fermentar enormes brejos, nassas onde apodrece nos juncos um Leviatã completo! Derrocadas de àgua no centro das bonanças e os longes para os abismos cataratando! Glaciares, sóis de prata, ondas de nácar, céus de brasa! Nefandos encalhes em golfos pardacentos, onde imensas cobras, roídas pelos percevejos, caem, com negro odor, de arrepiadas árvores! às crianças quisera mostrar as douradas do anil, esses cantantes peixes, peixes de ouro-larguei as enseadas com embalos de flores. Aos flocos, voejaram-me inefáveis ventos. O mar, que o balanço me suavizava, içava-me flores de sombras com ambarinas ventosas e eu ficava-me, qual mulher ajoelhada...península sacudindo as rusgas e o esterco das aves palradoras com olhos dourados. E eu vogava, quando entre meus fragéis nós, vinham às arrecuas, dormitar os afogados! Barco perdido, eu, sob os potros alados, pelo tufão lançado para um céu sem pássaro. Eu, de que os monitores e os veleiros hanseáticos teriam desdenhado a carcaça ébria da àgua;Livre, fumante, com coroa de névoas roxas,Eu que esburacava o céu rubro qual parede,E, delicada compota para os bons poetas,Levo líquens de sol ranhos de anil;Eu que manchando corria de elétricas lúmulas,Louca tábua, com escolta de hipocampos negros,Sempre que os julhos escorriam em pauladasOs céus ultramarinos de ardentes fornilhos;Eu, tremente, ouvindo a cinqüenta léguasO cio dos hipopótamos e os Mäelstrom,Eterno fiandeiro das azuis inércias,Eu sonho com a Europa de antigas ameias!Vi siderais arquipélagos! Também ilhas de céus delirantes ao vaguente abertos:-Nessas noites sem fim é que dormes e exilas, tu, milhões de aves de ouro, ó futuro vigor?Mas muito já chorei! As Albas são pungentes.Toda a lua é atroz e amargo todo sol:Enfunou-me o acre amor de ebriosos torpores.Que se me estoure a quilha!Que o mar me desfaça!Se demando àguas da Europa, é aquele charco negro e frio, onde, ao crepúsculo rescedente,Um menino acocorado larga tristemente.

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